Mais de uma década e meia separa a produção do curta-metragem Palace II, primeira parceria entre Douglas Silva e Darlan Cunha, dos novos episódios de Cidade dos Homens, que serão exibidos na próxima terça-feira (2). Durante esse período, os dois atuaram no filme brasileiro de maior projeção internacional deste século, o antológico Cidade de Deus, viveram uma série de aventuras na pele de Acerola e Laranjinha, atuaram e em telenovelas e chegaram a estrelar um filme sobre os personagens.
"Às vezes me lembra muito o Boyhood": Elenco e equipe falam sobre a nova temporada de Cidade dos HomensEm entrevista para o AdoroCinema os protagonstas da atração que volta à tela da TV Globo neste mês de janeiro falaram sobre como foi envelhecer diante das câmeras, as pressões que sofreram como atores mirins, as temáticas que transcendem a violência urbana presentes nos novos episódios da série e sobre a vontade de explorar mais e mais a identidade de seus personagens no futuro.
Escrita por escrita por Marton Olympio, com supervisão de roteiro de George Moura e direção de Pedro Morelli (Zoom, Entre Nós), a nova temporada revisita a amizade dos dois rapazes e apresenta novos dilemas, equilibrados entre drama e ação.
Acerola (Silva) enfrenta um drama que atinge milhões de brasileiros e será pauta do debate público em 2018, ano de eleições presidenciais: o desemprego. Casado com Cristiane (Camila Monteiro), o pai do menino Clayton (Carlos Eduardo Jay) passa por dificuldades financeiras e, desesperado, aceita um serviço que aos poucos se revela uma armadilha. O bico como motorista de caminhão nada mais era como uma fachada para um serviço envolvendo cargas roubadas encomendado por traficantes de quem Acerola não consegue se desvencilhar.
Laranjinha (Cunha) irá se confrontar com seu passado quando Poderosa (Roberta Rodrigues, que retorna à série depois de 13 anos) volta para retomar o contato com Davi (Luan Pessoa), filho que teve quando ambos eram adolescentes. Ressentido por ter sido abandonado com o filho para cuidar, Laranjinha não sentirá simpatia alguma pela mãe de seu filho, que deseja partipar de forma mais ativa da vida do menino, e o caso terá de ser mediado por uma juíza da vara da família, interpretada por Julia Lemmertz.
Além de Rodrigues, também retorna para Cidade dos Homens o ator Thiago Martins, que esteve presente na rotina de Acerola e Laranjinha no episódio "João Victor e Uólace", que encerrou a primeira temporada da série, em 2002. O personagem de Martins foi de adolescente playboy para um professor que leciona para crianças na comunidade carente onde moram Davi e Clayton.
Abaixo, leia a entrevista com Douglas Silva e Darlan Cunha.
Depois de atuar como os mesmos personagem por tanto tempo, como vocês percebem a evolução de vocês mesmos como atores e também como pessoas?
Darlan Cunha: A gente percebe a evolução dos personagens e nossa, porque o desafio continua, entendeu? O desafio ainda é muito grande, não se limita, não acabou, não é algo que a gente está acomodado e diz, "ah, é fácil fazer". Muito pelo contrário. O grande desafio é voltar para aquela realidade. Assistir os episódios e voltar para o mundo do Laranjinha, continuar atuando no mundo dele, pensando em como ele iria agir nas situações, não pensando como o Darlan, mas sim como o personagem
São novos desafios, são coisas que a gente não fazia como adolescente e que a gente está vivenciando agora com os personagens como adultos. Então dá para acompanhar o nosso envelhecimento, amadurecimento, tanto como personagem tanto como ator.
E para você, Douglas, como é acompanhar tudo isso, envelhecer diante das câmeras?
Douglas Silva: É engraçado porque somos jovens ainda, temos 29 anos de idade, só que a gente já trabalha com isso desde os 10, então eu sempre me pego, "Ah, se eu quero ver uma foto minha, alguma coisa minha jovem, é só pegar, digitar 'Douglas Silva Acerola' no Google que eu vou me ver jovem". E é bom isso e ver essa evolução do personagem, e a gente tem que mostrar isso, porque Acerola e Laranjinha eram personagens jovens, que viviam dentro da comunidade, que tinham suas vidas dentro da comunidade. Hoje em dia, eles são pais e têm as dificuldades que um ser humano adulto, que tem as responsabilidades como pais têm. Então, a gente tem que demonstrar essa evolução, sabe: "Ah, Acerola não é mais aquele garoto. Ah, ele agora é um pai de dois filhos, tem uma família pra sustentar". Então, esses são os desafios que a gente tem.
No teaser da nova temporada exibido para a imprensa, vimos que o Acerola vai se evolver com uma situação que ele não queria se envolver relacionada a roubo de cargas. A questão faz parte do cotidiano carioca e acabou de passar uma matéria sobre o assunto no telejornal [na TV ligada próximo ao local onde a entrevista foi realizada]. O que você acha da atualidade dos temas que a série aborda? De todos esses comentários sociais?
Douglas Silva: A série Cidade dos Homens, é lógico, fala da vida desses dois caras aí, desses dois caras que moram dentro da comunidade, sim. Fala da violência, mas é como pano de fundo. O que ela mais aborda são os problemas sociais. Desde a primeira temporada, desde aquela primeira temporada em 2002, 2003 pra cá, ela sempre tem tema social abordando. Assuntos sobre a paternidade, a paternidade precoce, sabe, assuntos sobre a calamidade pública e de saúde...
Darlan Cunha: Aborto...
Douglas Silva: São vários assuntos, sabe. Então, o Cidade dos Homens tem essa missão. E hoje em dia eu presto mais atenção nisso, porque a temporada passada falou da dificuldade de uma pessoa conseguir operar. Tem lá aquela fila do SUS. O problema é para ontem, tem que ser resolvido e não pode, porque tem que esperar até não sei quando. E aí começa a espera e a pessoa morre.
Darlan Cunha: Isso aí ainda é um problema grande. Tem problemas menores que as pessoas não estão solucionando. Vários hospitais públicos não têm luva pro enfermeiro, não tem gaze.
De que forma os novos episódios refletem a atual crise no estado do Rio de Janeiro?
Darlan Cunha: O estado está em um momento de crise desde que a gente começou a série. A crise só foi enxergada agora, mas a gente que é pobre, a gente que cresceu na favela, a gente que nunca teve nada, a gente tá em crise há muito tempo. E a crise foi assumida em 2016, pô? A gente tá em crise há 16 anos, mano. Nos anos 2000 estávamos na mesma crise, sabe. Hoje em dia é crise por que?
O pobre tem acesso a um computador, a internet, a uma televisão, sabe, um carro, um meio de transporte melhor, e aí voltaram a não ter, ou deixaram de ter. Mas a gente já passa por isso na saúde pública, que nunca foi boa, sabe, o colégio nunca foi bom. Eu vi que vários colégios deixavam de ter aula porque não tinham merenda. Então, são coisas que a gente tá reclamando há muito tempo atrás e a gente voltou a reclamar. Foi preciso Cidade dos Homens voltar para ter uma reivindicação de novo por meio de um programa na TV, porque mesmo 12 anos depois, sabe, nada resolvido e nada mudou, não teve muita evolução.
Como vocês sentem a resposta do público que também vivencia o que vocês passam na série?
Douglas Silva: Se você colocar lá só uma colherzinha de violência, você já vê que todo mundo já se identifica, porque na nossa sociedade a violência está tão grande, que o mínimo que você aborda, o mínimo que você conta, todo mundo já se sente representado. "É, eu passo por isso. É verdade, Ah, eu virei a esquina ali, sim, a senhora foi assaltada. Eu virei a esquina ali e teve um caso de bala perdida".
Darlan Cunha: É, mas eu acho que hoje em dia, o Cidade dos Homens... Quando a gente começou, a gente tinha muito a função de disseminar, e queria que todo mundo assistisse, o maior público que pudesse, que fizesse muito sucesso. A gente precisava disso naquela época. Era um programa de negro, de favela, de pobre, que precisava ser aceito.
Hoje em dia a série Cidade dos Homens já é aceita, então eu acho que a gente tem duas metas: a gente faz, sim, a série para o público-chefe, pro maior público, para todo mundo, para população, mas hoje em dia tem certos pontos em que a gente faz cenas mais elaboradas para valorizar o ator. A gente faz a série não só pra favelado, pobre e negro, a gente faz a série para outros artistas assistirem, outros atores ou escritores assistirem, e falarem assim: "esse tema foi foda, essa cena foi foda". E a gente tá direcionando também para onde a gente quer ir, sabe. A gente quer acertar todo mundo. A gente tem alvos agora, a gente tem direção. A gente quer ganhar prêmios, a gente quer concorrer, a gente quer chegar e fazer outros programas, ou aumentar a série.
Durante a coletiva de imprensa, Roberta Rodrigues falou que gostaria de ver mais 15 temporadas de Cidade dos Homens. Vocês têm vontade de continuar com Laranjinha e Acerola por muito tempo?
Darlan Cunha: Cara, eu acho que Cidade dos Homens sempre teve conteúdo pra ser muito maior, a gente só não teve espaço. Mas se derem a oportunidade da gente fazer 15 temporadas, acho melhor aumentar a quantidade de episódios para que a gente possa mostrar mais coisas em mais episódios. 15 temporadas levam 15 anos, a gente tem quase 30 anos de idade. Chegar aos 45 anos fazendo a série eu acho muito difícil.
Eu acho que a gente merecia um espaço maior para que a gente pudesse mostrar realmente a evolução dos personagens, a evolução do projeto e a evolução dos atores. Eu acho que a gente teria mais tempo de produção e a gente teria mais tempo de também trabalhar e mostrar muito mais coisa que a gente tem pra mostrar.
Vocês trabalham desde criança e agora, os personagens de vocês têm os filhos na série. Quais ensinamentos vocês passam para os atores mirins que estão vivendo o que vocês já experimentaram no passado?
Douglas Silva: A gente tenta sempre dar o conselho de responsabilidade. Eu acho que nesse meio artístico, nessa nossa profissão, quanto mais responsável você for, mais digno você será com o seu trabalho, entendeu? Então, é o conselho que eu, pelo menos, tento passar.
Darlan Cunha: Acho que o que é bom pra eles e o que foi difícil pra gente é essa questão de "boom, revelação, artista, estrela", sabe. Colocaram a gente numa posição quando a gente começou. Rotularam a gente de uma forma desnecessária, que acaba mexendo com a cabeça de qualquer criança. A pressão para sermos os melhores atores, estar em grandes prêmios, "o que vocês vão ser quando crescer?".
Eu acho que ultimamente eles estão sendo bem protegidos pela família, pela equipe, pela produção. Então, tem meio que essa proteção e eles têm mais espaço, sabe, eles se sentem mais à vontade.
A gente já tinha uma certa desenvoltura por conta do lugar de onde a gente veio. A gente cresceu na favela, a gente era bicho solto e a mãe sempre deixou meio que correr solto, então a gente tinha uma vivencia de rua com mais amadurecimento. A gente perdeu um pouco da infância. Eles não. Eles têm a infância, eles têm a vivencia deles de criança mesmo, mas estão trabalhando com algo, que é ser ator. E eles se divertem mais. Eles continuam sendo crianças, trabalhando como crianças, e não têm esse peso.
Eles não são sobrecarregados. Na nossa época a gente era sobrecarregado. Tipo, "a responsabilidade é de vocês, vocês são protagonistas, vocês têm que mandar muito bem". Hoje em dia não, é muito mais leve, é muito mais legal trabalhar dessa forma mais tranquila. A gente faz um bom trabalho e eles estão bem mais leves. Isso é ótimo.