Hoje revitalizada e segura parada obrigatória de turistas em visita a Manhattan, a 42nd Street foi entre os anos 1960 e 1980 povoada por profissionais do sexo, traficantes, moradores de rua, assaltantes, usuários de drogas, aventureiros em busca de diversão barata e corajosos cinéfilos. Conhecido então como The Deuce, o quarteirão entre a 7ª e a 8ª Avenida é o coração da nova série de David Simon (The Wire, Treme) e George Pelecanos para a HBO, que se propõe a abordar o surgimento e desenvolvimento da indústria cinematográfica pornô na cidade de Nova York. Escrito pelos dois e dirigido por Michelle MacLaren (Breaking Bad, Game of Thrones), o episódio piloto, já disponível na HBO Go, é uma extensa apresentação dos vários personagens que levarão a fértil trama adiante em oito episódios. O ano é 1971.
Sem ir pelo caminho óbvio de chamar a atenção do espectador com sequências explícitas de sexo e nudez (equilibrada entre homens e mulheres na medida do possível, é bacana salientar) desde o começo, The Deuce inicia com um dos gêmeos vividos por James Franco servindo bebida a um casal de amantes, dispensando a colega de trabalho do depósito dos lucros e sendo atacado por bandidos. Sexo, dinheiro, humilhação, poder e violência. Coisas do cotidiano das garotas de programa, classe importantísssima na história, representada de maneira plural. Há a complacente Darlene (Dominique Fishback), queridinha dos excêntricos; a recém-chegada Lori (Emily Meade), que de inexperiente não tem nada; a fatigada e enganada Ash (Jamie Neumann), que vê seu posto ameaçado pela novata; e a independente Eileen/Candy (Maggie Gyllenhaal), única que ousa trabalhar na Times Square sem cafetão. Última a aparecer, a personagem da também produtora Gyllenhaal assume seu protagonismo imediatamente. Mais autoconsciente do que as colegas e mais inteligente do que os clientes, Candy tem a melhor cena do episódio, quando explica a um adolescente porque ele não tem direito de exigir uma segunda vez de graça, demonstrando exímio domínio de estratégias de venda. Distante desse núcleo, outra figura proeminete é a universitária Abby (Margarita Levieva), que oferece a perspectiva feminista clássica a respeito da objetificação das mulheres e ao que tudo indica terá papel importante como questionadora da misoginia da indústria pornô, tema ainda hoje mais controverso do que a própria prostituição. Em cima das prostitutas estão os proxenetas, cada um com seu estilo de aparência e negócios, iguais na exploração sem peso na consciência.
The Deuce retrata tudo aquilo que Travis Bickle (Robert De Niro), o Taxi Driver, odiava com todas suas forças. Maclaren bebe na fonte de Martin Scorsese e outros clássicos da chamada Nova Hollywood na construção das imagens groovadas. A noite tem a cor dos letreiros dos cinemas, dos faróis dos carros, do néon que oferece "GIRLS GIRLS GIRLS", dos distantes postes, da luz do metrô. Nova York tem vida nas noturnas e é um lugar ordinário sob o sol, dia que dá aos personagens aparência de vampiros, desprovidos da força e do brilho que os preenchem na madrugada. Figurantes passando na frente dos atores dialogando exprimem a sensação de efervescência dos espaços públicos da metrópole, em contraste com os cubículos silenciosos em que os homens sem nome em busca de sexo são atendidos.
O piloto tem aproximadamente 85 minutos, mas sem ler a sinopse o espectador não terá qualquer noção de que a trama irá desembocar no cinema pornô, a não ser pelos rolos de filme nos créditos de abertura. Não é mandatório que uma série indique aonde irá chegar em seu pontapé inicial, no entanto pela duração era esperada alguma pista além de Vinnie (Franco) dizendo que está "construindo alguma coisa", até porque a máfia, outra pauta futura, é devidamente pincelada. Os minutos além da média são usados exclusivamente para uma nada apressada introdução e conexão dos players da jogada, o que é feito de maneira razoável. Apesar do cuidado, a vasta quantidade de personagens abre espaço para a confusão e nesse sentido é intrigante como será feita a diferenciação dos gêmeos vividos por Franco, pois ambos circulam pelos mesmos lugares, se vestem de forma parecida e não fica clara nenhuma característica individual acentuada pelo ator para explicitar quem é Frankie e quem é Vinnie. Para facilitar a compreensão de quem trabalha para cada cafetão, por exemplo, Lori é incumbida de verbalizar as dúvidas do público numa cena descaradamente elucidativa, bastante útil.
Por incrível que pareça - pelo meio imensamente sexista que aborda -, The Deuce pode redimir a HBO de temporadas de misoginia em Game of Thrones. Madura, ambiciosa e relevante, tem tudo para se tornar a ficção fundamental sobre a indústria pornográfica na TV. O Boogie Nights - Prazer Sem Limites das séries - e da costa leste.
The Deuce estreia na HBO Brasil dia 17 de setembro.