NOTA: 4,5/5
Better Call Saul teve início, em fevereiro de 2015, com um bonito prólogo. A sequência de abertura mostra o protagonista com um novo codinome, Gene (Bob Odenkirk), vivendo uma vida em preto e branco, solitária, de melancolia realçada pelo som do jazz. Pouco confortável com seu bigode, com seu disfarce, Gene reage com medo ao ver um homem suspeito no Cinnabon que gerencia. Sozinho em casa, ele se serve de uma bebida e assiste a vídeos do tempo em que foi Saul Goodman — nostálgico. Por quê?
A triste conclusão da terceira temporada de Better Call Saul responde a essa pergunta. Se a vida de reclusão e a adoção de uma segunda identidade são reflexos dos eventos de Breaking Bad, o protagonista sente saudades de seu passado como Saul Goodman não exatamente pelo sucesso oriundo de seus trambiques. Pelo contrário: a série derivada reforça, a todo momento, a luta de Jimmy McGill para contornar a sua essência e, ao final de muitas confusões, fazer o bem. Assumir a identidade de Saul Goodman foi mais que uma saída financeira ou busca por reconhecimento, mas um refúgio emocional.
A principal tragédia do personagem, portanto, não é o seu encontro com Walter White (Bryan Cranston) e o consequente disfarce no deprimido Gene, e, sim, se transformar em Saul para esquecer Jimmy. Eis o motivo de seu apego por Saul, abrigo que o protege de um passado excruciante. E o mais brilhante em Vince Gilligan e Peter Gould é reinventar um personagem caricato, até chato, com uma narrativa extremamente complexa. Ele é culpado de absolutamente tudo que acontece em sua vida, mesmo quando é vítima — aspecto profundamente humano, universal, tal como a relação conturbada com um membro da família.
Como previsto, a base da terceira temporada é a briga entre os irmãos McGill. Não à toa, o clímax desse conflito representa o ponto alto da série até aqui: o quinto episódio, "Sacanagem" (no original, "Chicanery"). Grandioso desde o prelúdio, o capítulo radicaliza qualidades e ambiguidades em Jimmy, Chuck (Michael McKean), Kim (Rhea Seehorn), Howard (Patrick Fabian), a crítica recorrente ao sistema judicial, a soberba visual da série, sua composição narrativa intricada, as nuances psicológicas... tudo em plena sintonia, em perfeição.
É também nele que McKean justifica a confiança de Gilligan de que ele concorrerá às maiores premiações de 2017. Do ensaio calculado de seu discurso (fisicamente engrandecido pelo plongeé, moralmente questionado pelo desfoque) ao momento em que a presunção de Chuck McGill se desmantela em fragilidade, loucura, e ele (retratado de cima, sentado, diminuído pelo ângulo, julgado pela câmera que o acompanha em close e se distancia em repulsa) surta no tribunal, a atuação é brilhante. O episódio todo é brilhante, talvez o melhor do ano.
As consequências dessa batalha, ruins para ambos, resultam no trauma esperado. A alusão ao clássico A Conversação, de Francis Ford Coppola, confere elegância e angústia ao colapso de Chuck; seu desfecho, a última cena de mais um ano incrível de Better Call Saul, simboliza o tom dolorido do surpreendente spin-off. Assim se encerra um arco impressionante e se explica por que o protagonista quis tanto esquecer Jimmy e abraçar Saul. Mas vem mais pedrada por aí, haja vista que um segmento importante precisa de resolução e é a principal garantia de que teremos uma quarta temporada (ainda não confirmada).
Kim ainda está muito receosa com Jimmy no início desse terceiro ano. Uma cena específica ilustra esse aspecto com os dois à contraluz saindo de uma porta bipartida, espacialmente separados. Depois que Jimmy brilha no tribunal ("Sacanagem" é divisor de águas em muitos aspectos), mostrando todo o seu potencial para prosperar advogando honestamente, Kim sorri, e a parceria fraterna reassume a sua forma mais íntima. No penúltimo episódio, aceitando um novo cliente para pagar as contas e preencher a lacuna deixada pela punição a Jimmy, Kim sofre um acidente — uma das quedas do título. Esse baque importante ainda provocará repercussões na relação entre eles, e a fotografia trata disso ao mergulhar Jimmy em sombras enquanto posiciona Kim diante de uma janela iluminada, compondo um novo Ying Yang que substitui a dualidade com Chuck e, certamente, também será decisivo na concretização de Saul.
Assim sendo, Better Call Saul apresenta personagens e conflitos próprios tão sólidos, pungentes, que as reminiscências de Breaking Bad e usuais referências à série original já interessam bem pouco. Um bom exemplo disso é o modo como Gilligan e Gould explicam algo banal, a deficiência de Hector Salamanca (Mark Margolis), explorando a complexidade de Nacho (Michael Mando); evocando sua empatia e construindo sequências eletrizantes. Pelo mesmo motivo, a história de origem de Gus Fring (Giancarlo Esposito) não tem o impacto esperado, e isso não chega a ser ruim. A lamentar, a decadência de Mike (Jonathan Banks) na trama, embora siga como um fan favorite, personagem que magnetiza a atenção do espectador sempre que em cena.
Por fim, é preciso reforçar a importância dos prólogos em Better Call Saul. Tanto os que iniciam os episódios, formando a estupenda rima do derradeiro "Lampião" (repito: lampião!), como os de temporada, estabelecendo a evolução de Gene no tempo presente, após os eventos de Breaking Bad. Na segunda temporada, vimos o personagem mais bem adaptado; ainda temeroso, porém revelando, sutilmente, um desejo crescente de se libertar e dizer quem realmente é — Saul Goodman — ao pichar "sg esteve aqui". Na abertura da terceira, o homem sério e introspectivo explode: na frente de dois policiais, ele sugere que o rapaz preso num pequeno furto não diga nada e arranje um advogado. Depois, desmaia.
Ao que tudo indica, o drama que aguarda Jimmy no final da quarta (e provavelmente última) temporada de Better Call Saul será anunciado já no prólogo, quando Vince Gilligan apresentar a sequela do apagão de Gene; ou sua nova explosão, irrompendo em busca de Saul e mostrando que não adianta assumir outras identidades, o carma de Jimmy sempre o perseguirá.