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    American Gods mergulha de cabeça nas alegorias na primeira temporada (Crítica)

    A nova série produzida por Bryan Fuller e Michael Green traz uma bagagem e tanto, mas deixa os personagens à deriva para ilustrar um novo mundo.

    Entertainment Weekly / Freemantle Media

    Nota: 4,0 / 5,0

    Se o mundo tivesse sorte o suficiente, a primeira temporada de American Gods não teria soado tão particularmente relevante e oportuna no contexto da geopolítica atual. Isso porque, apesar de ser uma história baseada em um livro publicado originalmente em 2001, a alegoria que faz com a imigração, a diversidade cultural e o escape pela fé refletem — e muito — os extremismos em pauta sobretudo nos últimos meses.

    É uma simbologia extrema, com deuses novos e antigos lutando de lados opostos em uma iminente guerra pela adoração do público cada vez mais distante dos ídolos “originais” e fixados em alguns novos (como a mídia, a tecnologia) ou outros nem tão novos, como a luxúria (na figura de Bilquis). No meio deste caminho, Shadow Moon (Ricky Whittle) é — ou era — um cara absolutamente comum, que por algum motivo que lhe foge à compreensão, se vê no meio desta disputa com algum papel essencial.

    A abstração da história é refletida de maneira quase didática nas escolhas da direção de arte, através do uso propositalmente exagerado das cores e contrastes. Mas para além da parte tecnicamente deslumbrante, American Gods soa exatamente como um livro aberto com dezenas de passagens conectadas entre si de forma quase imperceptível, mas todas ávidas para ganhar a tela. Por ser uma espécie de colcha de retalhos, mais de uma vez este acaba sendo um aspecto negativo do ponto de vista do roteiro — visto que os episódios são em sua maioria pinceladas rápidas e superficiais sobre vários aspectos da trama. São raros os momentos, por exemplo, em que a história se dedica a aprofundar realmente algum daqueles personagens — e, não sem querer, os episódios que tomam seu tempo para isso acabam sendo os mais memoráveis, e são aqueles que dão destaque a Laura Moon, numa interpretação bastante sinuosa e repleta de camadas por Emily Browning. Mesmo não sendo um dos muitos deuses, ela acaba sendo a personagem mais interessante exatamente porque é a mais explorada.

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    Por se tratar de uma série baseada em um material literário que existia previamente, e um investimento ousado e ambicioso do canal Starz, existe um certo contraponto comedido no que é apresentado na primeira temporada. Enquanto quebra diversas regras no âmbito técnico, e entrega um show encantador de imagens milimetricamente construídas para fazer o queixo cair, ela permanece ‘dentro das linhas’ quando o assunto é a expansão narrativa da história. Existe uma certa liberdade em relação ao livro, sobretudo na parte que conta a chegada dos deuses à América, mas ainda assim é uma queimadura lenta que torna a espera pelo ápice certas vezes um exercício de desprendimento.

    A televisão e o cinema têm visto nos últimos anos diversas adaptações (histórias originais são, cá para nós, cada vez mais raras mesmo), e os destaques costumam ficar com aquelas que saem da caixinha. Tome como exemplo a segunda temporada da injustamente subestimada The Leftovers, que tomou gigantescas proporções quando deixou para trás o material do livro e se construiu com base naquilo que melhor funcionava em tela — deixando que Carrie Coon brilhasse como merecia. Ou a recente The Handmaid’s Tale, que também abriu espaço para liberdades narrativas e nem sempre seguiu exatamente a obra original de Margaret Atwood. Em outras dimensões, até Game of Thrones seguiu o mesmo caminho, embora nem sempre de maneira bem sucedida. Mas a tendência prova um ponto: as necessidades narrativas de uma série ou de um filme são diferentes daquelas de um livro, e em tempos de Peak TV, saber utilizar este artifício pode ser o diferencial entre um sucesso e um fracasso.

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    Não que American Gods não utilize esta artimanha. Quando o fez de forma mais proeminente — no episódio 4, “Git Gone” — ganhou inclusive o elogio de Neil Gaiman, por tocar em um ponto que faria total diferença na percepção de Laura. Em geral, é sem dúvidas uma história fascinante, com personagens potencialmente gigantescos e um elenco não menos que espetacular; de Ian McShane a Gillian Anderson, o time é uma força da natureza a ser reconhecido, mas ao menos neste início, muito do que poderiam entregar fica de escanteio em favor de uma apresentação generalizada do clima deste mundo e suas particularidades. A justificativa para isso é simples: os oito primeiros episódios abordam apenas ⅕ do livro de Gaiman. É uma mera introdução, mas que confia talvez um pouco demais na sua relevância e no seu próprio alcance.

    Freemantle Media

    Por um lado, isso não é necessariamente um problema. Afinal, a série conta com um aparato e tanto que permite este tipo de confiança. Bryan Fuller tem na bagagem produções que não podem ser ignoradas, como Dead Like Me, Pushing Daisies e Hannibal, e a parceria com Michael Green funciona de maneira efetiva para equilibrar na balança a sobriedade da história com uma certa leveza, muito bem-vinda, ao transpor aqueles personagens tão singulares e complexos para as telas. Além disso, American Gods tem uma relevância única por ter trazido a história da imigração para os lares americanos numa roupagem mística, em tempos de muros e muita xenofobia. Mas por outro lado, há de se tomar um certo cuidado e observar o que existe ao redor antes de demandar um certo nível de dedicação do público, sobretudo em uma temporada inicial.

    O exercício de fé que a primeira temporada de American Gods requer do público tem o seu êxtase em momentos que testam os baixos limites de tolerância conservadora — como na inesquecível cena de sexo entre dois homens muçulmanos — e na divertidamente rica dinâmica entre Laura Moon e Mad Sweeney (Pablo Schreiber), mas parece colocar o pé no acelerador justamente no episódio final, “Come to Jesus”, em que Wednesday (McShane) finalmente revela que deus ele realmente é (dica: ele é conhecido popularmente como pai do Thor). Aqueles que perseveraram puderam notar que esta parece ser apenas a superfície da história, e ao estudar os erros e os acertos desta temporada, a série se beneficiaria, futuramente, de explorar melhor cada personagem individualmente — assim como fez tão bem com Laura.

    Mesmo com alguns pontos de estranhamento, a primeira temporada de American Gods é um desafio pelo qual vale a pena se aventurar. Curiosamente, o material de divulgação pediu ao público que acreditasse. “Believe”, lê o cartaz. E a temporada mostrou, definitivamente, por que merece a atenção e um segundo olhar. Agora, prossiga.

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