Antes dos jornalistas passarem por Barry Sonnenfeld, cada ator e membro da equipe de Desventuras em Série que conversaram com o seleto grupo de profissionais da imprensa que visitou o set da produção da Netflix em maio de 2016, em Vancouver, no Canadá, perguntava “Vocês já falaram com o Barry?”, e emendavam um malicioso sorriso de canto de boca.
O mistério foi dissolvido quando o showrunner da série, de 63 anos, entrou na sala. Vestindo seu característico chapéu, espalhafatoso, falando alto, ele foi logo perguntando: “O que vocês querem de mim?” – não sem antes pedir para este que vos fala (escreve) trocar de lugar com ele. A figura, que é judeu e filho único (expressão que ele repetiu cinco vezes), não queria ficar de frente para a janela – e se distrair com o tráfego do outro lado da rua.
“Uma grande coisa sobre mim é que eu falo tão alto que eu nem preciso desses gravadores. Nesse exato instante, eu estou falando com o seu editor lá no Brasil”, cismou comigo. Declaradamente egocêntrico (o tal papo do “judeu filho único”), ele provoca: “Tentei fazer com que um quadro meu aparecesse em todos os episódios. Então, em todos os episódios, o objetivo é achar o meu retrato. Alguns estão bem na cara, outros não”.
Confira os principais momentos da entrevista com o hilário Barry Sonnenfeld [ok, o texto é enorme, mas é difícil cortar um cara tão divertido].
Quais são as diferenças entre a série e o filme de 2004?
Ah, sim. Oi [Barry se dirige à tradutora que acompanhava uma dupla de jornalistas chineses], meu palpite é que você está traduzindo tudo o que eu digo. É o seguinte: eu sempre dou respostas muito longas e você sempre traduz em frases muito curtas, então eu acho que você não está me fazendo parecer engraçado o suficiente. É muito importante que você seja muito engraçada com o que você traduz, ok?
Tradutora [sem graça]: Ah, sim, tudo bem, tudo bem. É difícil fazer isso simultaneamente.
É, eu sei. Boa sorte. Ok, a diferença... Essa é a sua água?
É. Nós podemos trocar [Eu digo. Depois de trocarmos de assento, nos esquecemos de trocar a garrafa d’ água].
Ok, a diferença é a seguinte... Antes de mais nada, preciso dizer: eu amo esses livros desde a primeira vez que os li para os meus filhos, para a minha filha, há alguns anos atrás. Parece que tenho mais de uma porque ela é uma criança muito difícil, mas eu só tenho uma filha mesmo. Eu sempre gostei dos livros e o que eu acho muito interessante na série é que todos os personagens adultos são ineficientes. Eles podem até ter boas intenções como o Sr. Poe (K. Todd Freeman) ou a Juíza Strauss (Joan Cusack) ou podem ser malvados como o Conde Olaf (Neil Patrick Harris), mas todos eles são incompetentes, igualmente inúteis e só as crianças são capazes de fazer coisas fantásticas ou importantes. É por isso que nós estamos tentando nos manter como "crianças" pelo maior tempo possível, porque os livros foram feitos para crianças.
Na verdade, eu ia dirigir o filme (de 2004, protagonizado por Jim Carrey) e eu me envolvi bastante com a pré-produção. Por algumas razões bastante políticas nas quais eu não vou me aprofundar, acabei saindo do projeto, algo que me deixou muito triste. Agora, dez anos depois, eu tenho a oportunidade de fazer certo... de fazer uma versão diferente, mais sombria, menos pateta, mais emotiva, espero eu, e com um elenco fenomenal. Eu acho que o filme era muito "brilhante", muito colorido e nossa série é bastante monocromática. A série é bem mais contida em relação aos aspectos visuais e cômicos. O que que você quer, hein? [Eu não disse que ele cismou comigo?]
Quero fazer uma pergunta.
Fala. De onde você é?
Sou do Brasil.
Legal.
Eu gostaria de falar um pouco sobre o início do projeto. Pelo que eu entendi, a Netflix procurou você para fazer esse projeto, certo?
Não! Como eu disse, eu sempre gostei do material, dos livros...
Mas você falava do processo do filme...
Sim, mas agora eu estou no lugar certo. Um famoso agente chamado Jimmy Miller, que costumava ser o agente do Jim Carey, me ligou e disse: "Ei Barry, a Netflix está fazendo uma série sobre Desventuras em Série, você devia fazer parte". Então, várias pessoas fizeram algo como uma campanha para que eu entrasse na produção, mas a Netflix queria outros diretores à frente do projeto. Eles acharam que eu estava envolvido no resultado final do filme por causa do meu crédito de produção e eles queriam seguir por um caminho totalmente diferente. Na verdade, eles não queriam que eu participasse da série. Eles quase não me entrevistaram.
Mas, eventualmente, e graças a Jimmy, eu tive a chance de ser entrevistado. Entrei na sala, por sorte não havia janelas [aparentemente, ele se desconcentra com o conteúdo do outro lado das janelas], então eu não precisei ameaçar ninguém [como havia me ameaçado]. Sentei e expliquei a eles o motivo pelo qual eles iriam me querer como diretor da série. Uma hora e meia, duas horas depois, eu saí da reunião sentindo que eu tinha conseguido a vaga, apesar de eles não terem me dito isso. Eu expliquei a eles tudo o que eu achava incrível nos livros e que não foram incorporados no filme, falei sobre a estética e o estilo e a relação entre as crianças e os adultos e consegui a vaga, finalmente.
Fiquei muito animado. Não só porque eu estaria participando dessa incrível produção, mas também porque, e isso vai soar como se eles tivessem me pagado para dizer isso, mas a Netflix é o melhor lugar para se trabalhar. A missão deles é deixar os artistas trabalharem da forma mais livre possível para atingir o sucesso.
Como eu sou filho único e judeu, gosto de estar no comando de tudo. Esse é o maior desejo de alguém que é filho único e judeu. Eu não consigo ser o chefe em casa por causa da minha filha e da minha esposa, mas aqui eu estou no comando. Centenas de pessoas, vários homens carregando cargas pesadas só porque eu mandei. Isso é ótimo.
Então você é o showrunner da série? [Até então, em maio, a função não estava bem clara].
Sim. O material desses livros é um material muito específico e eu sinto que eu conheço bem a série. Daniel Handler (escritor da saga “Desventuras em Série” sob o pseudônimo de Lemony Snicket) também esteve comigo na pré-produção do filme e ambos fomos demitidos naquela época. Agora, estamos juntos novamente. Daniel foi de grande ajuda para eu conseguir essa vaga.
Outras pessoas estavam envolvidas no projeto também, mas eu não acho que elas entendiam exatamente o que estávamos querendo atingir e a Netflix, sentindo toda a carga do filho único de família judaica, me deixou ficar no comando e controlar tudo. Então, a equipe é formada por mim, por Daniel Handler e por mais um roteirista, chamado Joe Tracz.
Sabemos que já existem três temporadas nos planos...
Que bom...
A autobiografia não-autorizada de Lemony Snicket também pode se tornar parte da série ou um spin-off?
Nós incorporamos algumas das ideias presentes nesse livro na série. Mas, o nosso plano no momento é dividir cada um dos treze livros em dois episódios, um total de 26 horas. Queremos ter oito episódios na primeira temporada, dez na segunda e mais oito na terceira, totalizando 26. Eu não vejo um spin-off no momento, acho que Neil vai ficar feliz de não ter que passar ainda mais tempo colocando toda aquela maquiagem, mas estamos sim incorporando alguns aspectos desse livro na nossa trama.
Só para vocês saberem, existem vários easter eggs nos episódios. Tentei fazer com que um quadro meu aparecesse em todos os episódios porque eu sou filho único e judeu. Então, em todos os episódios, o objetivo é achar o meu retrato. Alguns estão bem na cara, outros não.
Isso é verdade?
Sim, é verdade. Prestem atenção.
Tem uma coisa em que eu acho que sou muito bom, e eu disse isso na reunião com a Netflix, que é criar mundos. Adoro isso. Tanto o universo da Família Addams, quanto o de The Tick, ou o dos Homens de Preto ou o de Pushing Daisies, todos eles têm suas próprias realidades. Em cada um dos casos, eu me sinto como em um documentário, porque sinto a realidade daquele mundo.
Você já chegou a brigar com o Daniel Handler?
Claro! Daniel não é filho único, mas bem que poderia ser. Ele vendeu mais de setenta milhões de livros e isso fez com que ele se tornasse uma espécie de "filho único", bastante judeu. Ele é tão seguro de si mesmo como eu sou autoconfiante, e eu adoro trabalhar com pessoas assim, mesmo que tenham opiniões fortes e discordem de mim. Eu mando Daniel parar de falar besteira, ele retruca e diz que eu sei que ele está certo, eu digo que ele está errado, mando ele parar de falar besteira novamente e, eventualmente, nós voltamos ao ponto de "Ok, vamos parar com isso, onde nós estávamos?". Eu adoro trabalhar com ele, ele criou esse mundo. Nós brigamos o tempo todo, parece que somos casados.
O que te fez querer trabalhar com Neil Patrick Harris?
Neil é muito talentoso. Não são todos do elenco, mas grande parte dos atores da série tem um passado no teatro. Nós queríamos que as performances da série fossem teatrais e totalmente reais ao mesmo tempo. O aniversário dele está chegando e eu prometi a ele que se ele aceitasse fazer a série, a Netflix daria uma câmera da Sony de última geração para ele, então eu estou tentando fazer isso acontecer. É a Sony A7R2, vai ficar ótima com uma lente de 16-35mm ou de 24-70mm com abertura de 2.8. Falaremos sobre isso mais tarde [Whaaat?!]
K. Todd Freeman também veio da Broadway. Uma das razões pelas quais ele conseguiu o papel é porque ele é o único ator que participou dos testes para o Sr. Poe e tossiu. E o Sr. Poe sempre tosse. Então, lendo o roteiro, percebemos que tínhamos que contratar ele, o "cara que tosse". Ele é um ótimo ator e um ótimo "tossidor" também. Foram várias as vezes em que eu disse para ele: "ok, a cena foi ótima, mas você pode tossir um pouco mais dessa vez?".
Só para esclarecer: Eu não sei se eu entendi bem, porque o inglês não é a minha primeira língua [ok, fiz o sonso, para tocar em um assunto polêmico], mas por que Mark Hudis (de True Blood, era o showrunner inicialmente) saiu do projeto?
Eu não posso falar especificamente sobre isso porque eu não sei os detalhes das discussões que ele teve com a Netflix. Eu acho que, quando nós estávamos criando a série, ele tinha uma visão diferente e eu creio que, e, novamente, eu não sei bem o que aconteceu, ele queria seguir um caminho diferente do que eu, Daniel e Scott Frank (roteirista de O Nome do Jogo) queríamos. Eu só recebi uma ligação me informando que eu estava no comando e eu disse “ok”.
Ok, então.
Foi um prazer falar com vocês. Vocês conseguem me ouvir?!
Sim, até no Brasil [devolvo].
Obrigado por trocar a água comigo.
Sem problemas.
Vocês já foram ver o set? [Ainda não tínhamos visto]. Se vocês tiverem a chance de subir até o segundo andar da mansão (do Tio Monty), lá tem um retrato meu como um indiano. [Infelizmente, não chegamos a conhecer o segundo andar]
Tradução: Renato Furtado.
O AdoroCinema viajou a convite da Netflix.