“Um pouco de trauma pode ser esclarecedor”. (Bernard Lowe)
Dos inúmeros divertimentos que Westworld traz (isto é, se você for uma pessoa que gosta de mistérios e de desvendar charadas), um deles é o fato de sempre haver uma frase, uma música ou uma cena específica que funciona como um fio condutor para todo o desenrolar do episódio. E o penúltimo da temporada pode ser sintetizado com a justificativa de Bernard (Jeffrey Wright) a Ford (Anthony Hopkins) quando pede para conhecer a própria história: “Um pouco de trauma pode ser esclarecedor”. E, neste caso, realmente foi.
Falta apenas um episódio para a primeira temporada de Westworld chegar ao fim, e é louvável o quanto a série fez em nove horas. A série é ambiciosa, e com os nomes de Jonathan Nolan (O Grande Truque, Amnésia, Person of Interest, irmão do Christopher) e J.J. Abrams envolvidos, uma trama repleta de mistérios deveria ter sido esperada. Ao contrário, as expectativas da internet aguardavam uma história mais contemplativa. Surpreendentemente, Westworld capta com lucidez indagações existenciais ao mesmo tempo que move semanalmente infindáveis discussões a respeito de linhas temporais e verdadeiras identidades de personagens. É material vasto para os dois gostos.
Em “The Well-Tempered Clavier” (ou “O Cravo Bem Temperado” – conceito que será explicado a seguir), a série entrega mais uma importante revelação sobre a natureza de seus protagonistas, e ilumina de uma vez por todas a identidade de Bernard e a jornada de Dolores (Evan Rachel Wood). Para alguns, estas revelações já eram esperadas (nós fizemos uma análise falando um pouco sobre isso há algumas semanas), mas não significa que os eventos tenham sido menos chocantes. O que faz uma reviravolta ser realmente efetiva é como a cena permite ao momento ser importante para aqueles personagens – eles precisam sentir. E enquanto Bernard descobre quem ele realmente é, o espectador é convidado a absorver a informação junto a ele, mesmo que já suspeitasse. E quando Dolores descobre o caminho até Arnold e lembra que foi ela que o matou, o impacto que ela sente é tão grande quanto o nosso.
A primeira revelação interessante que o episódio faz é Maeve (Thandie Newton) conseguir reconhecer que Bernard é um androide de imediato. Ela está em um interrogatório com ele, após ter matado a nova Clementine (Lili Simmons) e desperta a sua consciência, revelando que ele é um robô e invertendo os papéis naquele aquário de vidro. É então que Bernard vai até Ford e exige visitar todas as suas memórias. Ele conta que analisou o próprio código e identificou traços de que ele teria sido criado por Arnold. A princípio, isto eliminaria a teoria “Bernarnold”, mas por fim entendemos que os traços que ele identifica são porque ele, Bernard, foi feito nos moldes do cocriador de Westworld. Para a felicidade dos conspiradores: Bernarnold não é mais teoria. É fato!
A tensão construída ao redor desta grande reviravolta se liga diretamente com Dolores. A reencontramos após ela e William (Jimmi Simpson) terem sido capturados por Logan (Ben Barnes), que nas tentativas de fazer o futuro cunhado “acordar” e enxergar que o parque é apenas uma ficção, abre a barriga de Dolores para mostrar que ela não passa de um maquinário. O momento causa a sua fuga, e mais um dos “lapsos” mostra a personagem novamente fazendo aquele mesmo percurso sozinha.
Aqui, trabalhamos com a teoria de que estamos acompanhando a história de Dolores em dois momentos. Primeiro, quando ela fez o mesmo caminho com William cerca de 30 anos antes; e atualmente, que ela faz a jornada sozinha, porque está ouvindo o chamado de Arnold na sua cabeça.
Esta sugestão fica cada vez mais forte, sobretudo porque logo depois de fugir do acampamento, Dolores chega novamente à cidade da igreja branca – Escalante. Não a Dolores que foi esfaqueada, mas a Dolores que está inteira; a Dolores do tempo “atual”. Diferente do episódio anterior, em que ela encontra a cidade totalmente soterrada, dessa vez Escalante está completamente exposta, sugerindo que ela está no tempo presente, quando Ford já a desenterrou para a sua nova narrativa. É então que Dolores finalmente consegue fazer o seu caminho até a igreja, finalizando sua busca. E ela sabe exatamente para onde ir... porque já foi até lá antes disso.
O caminho do elevador dentro do confessionário leva a um corredor, que por sua vez leva a uma sala “antiga”, o mesmo local em que Bernard matou Theresa (Sidse Babett Knudsen) no episódio 7. Enquanto Dolores caminha pelo corredor, os lapsos a revelam com duas roupas diferentes – confirmando, portanto, que são dois momentos. Dolores vestida de donzela, no vestido azul, há 35 anos (quando Arnold era vivo); Dolores vestida de pistoleira, no tempo atual.
A revelação de Bernard ser uma cópia de Arnold culmina no mesmo ápice da revelação de Dolores. A impressionante montagem expõe uma reviravolta que foi sendo cuidadosamente arquitetada durante 70% da temporada. Aquelas cenas do interrogatório entre Dolores e Bernard, que víamos nos primeiros episódios e ela estava com o vestido azul, não eram com Bernard no fim das contas. Eram Dolores e Arnold, há 35 anos, quando ela completou o caminho pela primeira vez.
Novamente, os truques de edição são a peça-chave para manter o segredo intacto. Ao longo da temporada, os cortes foram essenciais para esconder que Bernard é uma cópia de Arnold, e o principal artifício foi a esperta (e um pouco barata) tática de escondê-lo na foto que Ford mostra no episódio 2. Aqui, todo o roteiro percorre em torno da sequência perfeitamente executada por Evan Rachel Wood, a fim de esclarecer todos os truques, confirmar que há mais de uma linha do tempo (e que a série brincou com a percepção o tempo todo para despistá-la) e que Dolores tem uma importância muito maior do que se enxerga à primeira vista para este despertar de consciência. Ela é, de fato, a origem de tudo. Nos resta agora descobrir o porquê.
Quantas linhas temporais?
Essa história de linhas temporais pode ficar muito confusa, e às vezes fica. Então, explicamos novamente: há três tempos diferentes em curso nesta temporadan de Westworld. O primeiro é há aproximadamente 35 anos, antes do “incidente”, quando Arnold estava vivo e Dolores o encontrou pela primeira vez. O segundo seria alguns anos depois disso, há cerca de 30 anos, quando William e Logan chegam ao parque pela primeira vez. O terceiro, por fim, é no tempo atual, quando Dolores faz o mesmo caminho que havia percorrido com William, desta vez sozinha, para encontrar novamente Escalante e descobrir que Arnold está morto – e pelas mãos dela. É nesta última linha do tempo que existe o Homem de Preto.
E falando o Homem de Preto...
Esta grande figura enigmática da temporada, o Homem de Preto (Ed Harris) vai ficando cada vez menos misterioso. Este episódio revela que ele é membro do corpo executivo da Delos, e se a interferência de Charlotte Hale (Tessa Thompson) significa alguma coisa, é que a palavra do homem é bastante influente nas decisões do conselho. E que ele realmente não gosta nada das visões de Ford.
Agora que finalmente Teddy (James Marsden) morreu mais uma vez, o Homem de Preto ficou solitário e parece ter encontrado o seu destino... ou uma parte dele? Nós vimos que ele reencontra Dolores justamente quando ela acha que é William que vai passar pela porta da igreja. Será isso suficiente para creditar a teoria de o Homem de Preto ser William? Ainda há muito a ser explicado neste ponto, e a teoria é cada vez mais evidente, mas tudo pode ser mais um truque de edição. Esperamos que o episódio final resolva a questão.
Sobre fotos e linhas temporais
Quem se lembra da foto que fez o primeiro Peter Abernathy (Louis Herthum) perder o juízo, lá no episódio piloto? A foto mostrava uma moça no meio da Times Square, e pode até parecer que o arco ficou solto, mas isso era apenas impressão. A foto reaparece neste episódio, e descobrimos que se trata da irmã de Logan, com quem William vai se casar assim que sair do parque. Isso significa que futuramente, de alguma forma a foto voltará aos arredores do Rancho Abernathy (será que William “perde” a foto de propósito?) e dará início a tudo o que acontece 30 anos depois. E é ainda mais uma das agora inúmeras evidências de que a aventura destes dois acontece em algum momento do passado, e que isso terá repercussões futuras.
Enquanto isso, Maeve e Hector Escaton...
Um pouco desconexo do restante dos acontecimentos e das reviravoltas acontecendo com Dolores, a história de Maeve se desenvolve em um passo paralelo. Ela continua brincando de Deus e recruta Escaton (Rodrigo Santoro) para fazer a jornada ao que ela chama de Inferno (a sede de Westworld) e possivelmente provocar uma espécie de "rebelião das máquinas" para sair do parque. Este ponto não é muito sutil com as referências míticas a inferno e paraíso, mas é bastante curiosa. Como esse despertar de Maeve vai se conectar com toda a grande trama no fim da temporada? Saberemos em um episódio.
O episódio recebe este curioso título, "O Cravo Bem Temperado", em referência a uma famosa composição de Johann Sebastian Bach para cravo solo. Os dois álbuns compostos pelo alemão são uma das obras mais importante da música ocidental, essenciais para o aprendizado do potencial das infinitas modulações dos instrumentos, e basicamente quem consegue reproduzí-la completa pode tocar qualquer coisa. Da mesma forma, os androides são a criação máxima de Ford, a sua própria busca pela perfeição, e a relação aqui é sintetizada em uma frase que Ford diz a Bernard: "Nunca confie em nós. Somos apenas humanos. Inevitavelmente, vamos decepcioná-los."
PS1: Difícil acreditar que esta tenha sido realmente a última participação de Jeffrey Wright. Sendo ou não, entra no ranking de uma das melhores atuações da TV neste ano.
PS2: O sobrenome de Arnold era Weber, e o sobrenome de Bernard, Lowe. O anagrama funciona: misturando as letras de Arnold Weber, o resultado é Bernard Lowe.