Sempre pontual, sempre certeiro, o Sensacionalista mandou muito bem durante o desenrolar dos eventos da última sexta-feira no Brasil. "Netflix pode adiar estreia de House of Cards hoje com medo de concorrência com a política nacional", brincava a manchete, mostrando que as notícias do site de humor estão mais que próximas da verdade, quase proféticas.
House of Cards demonstrou uma progressão temática e uma riqueza grandiosas até o fim de sua terceira temporada. Após dois anos de um Frank Underwood (Kevin Spacey) no ataque, nosso adorável (?) vilão passou a viver em posição vulnerável. Politicamente, é claro, mas especialmente em âmbito pessoal. Seu braço direito, Doug Stamper (Michael Kelly), fora de combate, afundado em problemas, ganhou um arco próprio e deu outra dimensão à série. Claire (Robin Wright) reivindicou protagonismo e rompeu com o marido, tornando-se algo ainda maior: um exemplo de empoderamento feminino. Isso se perdeu um pouco na quarta. O ritmo é outro. Numa mudança que não se fez, necessariamente, para pior.
A critério do espectador. Eu, particularmente, sou fã da temporada que se arrasta, e se expande, se multidimensiona e se justifica nos últimos episódios, como acontece no ano 3 de House of Cards. A maioria, porém, deverá enlouquecer com o desenrolar frenético dos acontecimentos na primeira metade do ano 4. A série segue muito sugestiva na construção psicológica dos personagens, mas, com bons motivos, passa a investir bem mais na ação. E, à medida em que lida com as repercussões da temporada anterior, Frank entra em parafuso. O clima soturno da série realça as contantes alucinações do protagonista — um reflexo de seu desconforto quando está vulnerável. A fragilidade é tamanha que Frank nem quebra a quarta parede. Se abre uma torneira, pinga sangue. Ele sangra. Quase enlouquece! Algo precisa mudar. E tudo muda. Por um acaso e de um modo que nunca poderia imaginar.
O jogo vira por completo quando Frank Underwood sofre um atentado. Uma ponta solta se fecha (Goodwin, sua mala, troca o nome e rala!), uma oportunidade se abre — para Claire. E ela mostra por que exigiu o seu lugar. Joga, mente, manipula; segue a cartilha. Mostra o seu valor e consegue o que quer. Quando Frank acorda, enxerga uma nova Claire. Em seu momento mais vulnerável, ele é conduzido de volta ao jogo pela mulher que desprezou meses antes. Isso é House of Cards em seu melhor, fazendo jus ao modo exemplar como retrata as personagens femininas — Dunbar (Elizabeth Marvel), Jacquie (Molly Parker), Cathy (Jayne Atkinson), Elizabeth (Ellen Burstyn, arrasadora), Leann (Neve Campbell), todas incríveis — ao contornar a inevitável reconciliação dos Underwood de maneira respeitosa ao grito de independência de Claire na terceira temporada.
Frank retorna e se depara com novos adversários: os Conway. Um casal jovem, com dois filhos lindos, que se ama torridamente numa manhã clara. Alternadamente, também no banheiro, o envelhecido Frank vê Claire, fora de foco, pelo espelho, ao longe, fitá-lo à espreita nos sombrios aposentos da Casa Branca. A vida perfeita de um e o casamento falido de outro num belo jogo visual, que ilustra a técnica impecável da atmosférica série de Beau Willimon (criador e showrunner que se despede de HoC) e é muito eficiente em manipular o espectador a uma antítese — Underwood x Conway — que simplesmente não existe, e será demolida mais adiante.
O narcisista Will Conway (Joel Kinnaman) veste uma máscara, e basta entrar no jogo político de Frank Underwood para que ela caia, pouco a pouco, profissional e pessoalmente. Em dado momento, eles discutem:
Frank U: Você é um republicano nova-iorquino. Uma ficção atraente, não é?
Conway: E você, um democrata da Carolina do Sul, uma ficção maior ainda.
Frank U: Muito bem.
Conway: E eu sou um republicano nova-iorquino, praticamente um democrata.
Na discussão acima, Beau Willimon articula verdades que transmitem o seu pensamento sobre política. A dualidade entre democratas e republicanos está cada vez mais diluída. Seja por mal, pois quem se destaca não está nem aí para ideologias, e usam-nas apenas para fins políticos e pessoais; seja por bem, haja vista que os anseios da população podem ir muito além de A ou B. Esta é a reflexão, num ponto alto da quarta temporada de House of Cards, que o Sensacionalista profetizou ser menos interessante e complexa que a atual situação política no Brasil — ainda que tamanha atualidade também comprove a sua relevância.
Como em tratar da questão da mulher, House of Cards dispensa abstrações ao abordar esses temas. Invasão de privacidade, manipulação de massa, uso ilegal de armas, política externa, terrorismo, enfim, tudo é visto na prática, objetivamente, e isso é muito positivo. Porém, a força da série está nas relações interpessoais. Por isso, seja quando Claire rompe com Frank, seja quando eles se reconciliam e transformam a crise que os cerca num caos de proporções globais, que o drama da Netflix volta a se mostrar magnética, hipnotiza o espectador e recupera um patamar grandioso. E ainda aponta o dedo na nossa cara, por aceitar uma cortina de fumaça espúria (a famigerada "guerra ao terror") que reverbera os piores desejos humanos (sede de vingança) e deixa uma dúvida sobre o porquê de torcemos tanto pelos protagonistas: será que não temos todos, lá no fundo, um pouquinho de Frank e Claire?