O Brasil é um dos maiores países com a população majoritariamente negra em todo o mundo. Dos mais de 212 milhões de brasileiros, 56,1% se autodeclaram como pretos ou pardos, segundo dados de 2021 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ainda que esses números sejam impressionantes, o fato de que existem lacunas na representatividade real das pessoas que nasceram aqui chega a ser quase rotineiro. Sempre existiu uma carência de pluralidade na televisão, que, ainda em 2023, é um dos principais meios de comunicação do país.
Ao longo das últimas décadas, mesmo com tropeços que mancharam a história da TV, principalmente com papéis estereotipados, há um movimento intenso pela participação de indivíduos que integrem grupos sub-representados nas telinhas. O documentário A Negação do Brasil, dirigido e roteirizado por Joel Zito Araújo (PCC - Poder Secreto), é um importante documento dessa jornada, a partir do registro de entrevistas e relatos de artistas vanguardistas sobre a luta pela escalação e representação positiva em folhetins da época. O realizador fez uma pesquisa sobre papéis atribuídos a pessoas negras durante o período de 1963 a 1997.
Vai na Fé: Regiane Alves se inspirou em Big Little Lies e The White Lotus para personagem complexaAinda que os anos 2000 trouxessem mais pessoas não-brancas aos holofotes na TV aberta, a sua maioria repetia os estereótipos vistos no século passado: personagens negros vistos apenas pelo prisma da violência ou da servidão. Hoje, pela primeira vez em mais de 70 anos, o telespectador presencia um feito histórico: as três novelas inéditas da maior emissora do Brasil, a Globo, são protagonizadas por pessoas negras.
As tramas de Vai na Fé, Terra e Paixão, Amor Perfeito, todas da TV Globo, tem protagonistas negros. A Infância de Romeu e Julieta, novela inédita do SBT, também se junta a este grupo. Vários artistas celebraram o momento como Juliana Alves, que compartilhou nas redes a seguinte mensagem: “O ano de 2023 é um março histórico de novelas protagonizadas por atores negros. “3 novelas ao mesmo tempo com protagonistas pretos. Uma conquista fruto de uma luta grande dos movimentos negros pelo reconhecimento da realidade do nosso país e valorização dos nossos talentos.”
Taís Araújo, uma das poucas atrizes negras a protagonizar grandes produções da TV aberta, também se manifestou. “Ah, que ALEGRIA viver esse momento!”, comemorou. “Dentro de cada história tem um elenco incrível e diverso nos representando”, disse sobre as produções no ar, incluindo a série Aruanas, da qual estrela.
Novelas de 2023: Conheça os próximos lançamentos da Globo, SBT, HBO Max e maisUm dos maiores veículos do mundo, o The Guardian, realizou uma reportagem sobre esse momento. A matéria "Black Brazilians claim prime time as telenovelas finally reflect diversity" (Brasileiros negros reivindicam horário nobre enquanto novelas finalmente refletem a diversidade, em tradução livre), escrita por Constança Malleret, destaca o seguinte:
"...por décadas, a questão da desigualdade racial tem se destacado por sua ausência: apesar de 56% da população brasileira se identificar como negra ou mestiça, suas novelas apresentam uma flagrante falta de diversidade --em alguns casos notórios, atores brancos foram até contratados para interpretar papéis negros", diz a publicação inglesa.
A Pequena Sereia: Por que Halle Bailey é a melhor escolha para o live-action da DisneyElisio Lopes Jr, roteirista de Amor Perfeito, foi entrevistado pelo portal e destaca uma importante mudança nas equipes que produzem estes projetos. “A grande vitória agora é que você não tem apenas atores negros [...] Você tem personagens que têm direito aos seus próprios objetivos, personagens que não estão contando sua história pelas lentes do olhar branco ou como consequência de racismo”, disse ele ao veículo.
Apesar da feliz constatação em termos de diversidade, ainda há uma longa caminhada para que haja equidade nas novelas, não apenas para pessoas negras, mas para pessoas das demais etnias. Esses pequenos passos também são acompanhados de muitas controvérsias. Em reportagem do UOL, publicada em maio de 2018, existe o seguinte dado: apenas 7,98% dos atores negros do Brasil estavam trabalhando nas principais emissoras do país (Globo, SBT e Record). Em 2022, segundo a Veja, apenas 14% dos atores escalados nas novelas da emissora do “plim-plim” eram negros.
Como estão os atores de Mulheres Apaixonadas hoje: 20 anos depois, novela marcou reencontro de “mãe e filha”Há poucos anos, ainda tivemos Segundo Sol, uma novela passada na Bahia, onde a maior parte da população é negra, mas o elenco não refletia essa realidade. Há também alguns percalços de bastidores, como foi o caso de Tempos do Imperador, novela envolvida em algumas denúncias sobre possíveis atos racistas atrás das câmeras.
Essa mudança, em 2023, ainda é o começo de uma importante mudança nas telas - principalmente quando se relaciona com um dos maiores veículos de comunicação do país, a TV. Ainda que seja a pequenos passos, quando se tem uma novela com 70% do elenco negro batendo recordes na faixa das sete (Vai na Fé) e são desenvolvidos personagens negros retratando, com profundidade, realidades diversas, com afeto e respeito, há boas perspectivas sobre o futuro.