Eduardo Coutinho é um dos mais brilhantes diretores brasileiros vivos, tendo realizado obras primas como Cabra Marcado Para Morrer e Edifício Master. Apesar da fama e do prestígio, leva uma vida simples e afastado de glamour. Com seu jeito peculiar e meio mal humorado, recebeu o AdoroCinema em seu escritório no centro do Rio de Janeiro para falar sobre seu novo filme, As Canções, em que pede para pessoas comuns cantarem as músicas de suas vidas e explicarem suas escolhas.
Antes mesmo de começar a conversa, Coutinho já demonstrou todo seu estilo sem meias palavras ou papas na língua ao reclamar com sua assessora de imprensa por causa da confusa agenda de entrevistas para promover o novo longa. Ele demonstra não gostar muito desta fase do processo “fazer um filme”, reforçando que já tem 78 anos e não lhe resta muita disposição para dar várias entrevistas. Mesmo assim, o cineasta dedicou mais de uma hora de conversa ao Adoro Cinema e abaixo você confere o que de melhor rolou no bate papo.
ORIGEM
Ao ser lembrado da cena em Edifício Master em que um dos entrevistados canta “My Way” e fala sobre a importância da canção em sua vida, Coutinho reconheceu que esta se encaixaria bem em As Canções, mas afirmou que aquele não foi um ponto de partida para o novo filme. “Isso é algo que vem de bem antes. A música sempre esteve nos meus filmes. Em Duas Semanas no Morro tem dez músicas. Em Babilônia 2000 tem a Fátima que canta Janis Joplin. Minha relação com a canção é algo muito antiga, já quis fazer um filme só com músicas do Roberto Carlos, mas seria um projeto difícil”, revelou.
AS CANÇÕES
“A canção é a coisa mais rica que o Brasil tem. Não é nem sequer a música ou a melodia, é a canção”, destacou o diretor. Segundo ele, a opção por gravar os depoimentos sem nenhum acompanhamento foi para reforçar a importância da letra. Coutinho afirmou que através das canções pode-se chegar a um estudo sobre a história do Brasil e até por isso não se prendeu a nenhum gênero musical ou artista específico.
O diretor falou sobre o processo de seleção dos entrevistados, destacando que mais importante que a música era a história de vida das pessoas. “É claro que existe um limite. Se a pessoa desafinar, tem que desafinar bem”, brincou. Também deixou claro que não tem preconceito por músicas estrangeiras e que a razão de não ter nenhum no longa foi simplesmente porque ninguém apontou uma como a canção de sua vida.
Para Coutinho, o momento mais emocionante do longa é quando o entrevistado canta “Esmeralda” e chora copiosamente, sem entender o motivo. “Foi a maior surpresa. É o aqui e agora que são tão importantes nos meus filmes”, disse.
O filme foi todo rodado em um palco de teatro, assim como Jogo de Cena. A diferença é que neste as pessoas estão de costas para a plateia, enquanto que no novo estão - aparentemente - de frente. O diretor não atribui maior significado ao "jogo de cena", revelando que a opção foi simplesmente para não ficar igual ao longa anterior.
CANÇÃO DE SUA VIDA
Eduardo Coutinho revelou que não possui nenhuma canção que marcou a sua vida, mas admitiu que fez uma forcinha para inserir “Ternura” no longa: “É uma música que tocou no meu primeiro filme, ABC do amor (1966), e sempre quis voltar a usá-la.”
EDIÇÃO
As filmagens de As Canções duraram apenas setes dias, com o processo mais demorado vindo na sequência: a edição. Coutinho revelou que tirou muitas canções do filmes, inclusive algumas que eram poderosas demais. Disse ainda que cortou muita coisa por achar que o depoimento não se encaixava no longa, com o de duas pessoas que cantaram “Pais e Filhos”. “Queria a música no filme, mas eles cantavam mal e tinha o problema de que esta possui mais de três minutos e atrapalhava a edição”, revelou.
O diretor contou uma curiosidade no processo de seleção dos depoimentos. Disse que cortou “Como uma Onda” porque ela foi escrita pelo Nelson Motta, em companhia do Lulu Santos. “Não queria o Nelson Motta porque ele está em todos os documentários musicais feitos no Brasil”, brincou.
DIREITOS AUTORAIS
"O direito autoral é a morte do documentário", atacou. O diretor afirmou que pagou os direitos das músicas presentes em As Canções pois elas são fundamentais e centrais no longa, mas que não o fez nos outros filmes. Reclamou que o direito autoral virou uma mercadoria.
A luta de Coutinho contra a indústria dos direitos autorais não é nova. No ano passado, realizou Um Dia na Vida, longa que teve apenas uma exibição na Mostra de São Paulo. O documentário consiste na filmagem de 19 horas de programas de TV ao longo de um dia.
SAÚDE
A entrevista com Coutinho foi surpreendentemente franca, com o diretor falando sobre a dificuldade em obter dinheiro para filmar e também sobre os problemas de saúde. Admitiu sofrer de enfisema pulmonar, fruto dos cinco maços de cigarro que ainda fuma por dia, e por isso tem selecionado projetos que não exigem muita disposição física, como As Canções e Jogo de Cena. “Não consigo mais subir o morro para filmar, por isso tenho que fazer dentro de um teatro mesmo”, revelou.
Apesar dos problemas, afirmou que não pensa em deixar a profissão e que está preparado para, se precisar, filmar usando uma cadeira de rodas. “Estou preparado para filmar com cadeira de rodas. O Michelangelo Antonioni filmou e o Bernardo Bertolucci faz até hoje. Se precisar filmo até cego, com uma pessoa ao meu lado falando o que está acontecendo. Só acho mais complicado filmar surdo”, confessou.
PAIXÃO
"O que você faz por amor te pagam mal", afirmou Coutinho sobre a dura vida como documentarista. Ele deixou claro, no entanto, que prefere continuar como está do que sair por aí aceitando trabalhos na área publicitária. Seu lema é: "fazer tudo sem vender a alma."
OUTROS DOCUMENTARISTAS
Apesar do jeito durão, demonstra muito carinho por seus personagens e faz questão de passar o filme para eles antes da estreia. Por causa disso, dentre outros motivos, não é muito fã do trabalho de Errol Morris (Sob a Névoa da Guerra), que é muito cínico com seus personagens. "Mas sem dúvida é um diretor muito original", ressaltou.
Coutinho também afirmou que não tem gostado muito dos últimos trabalhos de Frederick Wiseman, destacando que o diretor norte-americano não envelheceu bem.
No Brasil, destacou Carlos Nader (Pan-Cinema Permanente) e João Moreira Salles (Santiago), e elogiou muito o trabalho de Rodrigo Siqueira em Terra Deu, Terra Come.
"O documentarista é como o dentista para o médico, com a diferença de que não tem dinheiro", brincou Coutinho ao afirmar que o diretor de ficção é visto em um plano superior ao documentarista. Felizmente, isso não é motivo para fazer ele mudar de lado.