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    Transeunte Entrevista exclusiva com Eryk Rocha e Fernando Bezerra

    Entrevista exclusiva com o diretor Eryk Rocha e o ator Fernando Bezerra, de Transeunte.

    Eryk Rocha carrega consigo a marca de ser filho de Glauber Rocha, talvez o diretor brasileiro mais famoso de todos os tempos. Após três documentários, ele se arriscou na ficção ao rodar Transeunte, que chega aos cinemas em 12 de agosto. Um filme em preto e branco, sobre a solidão de um homem de 70 anos no centro do Rio de Janeiro e com pouco mais de duas horas, que o próprio diretor assume de antemão ser "de autor".

    O AdoroCinema entrevistou Eryk Rocha e também Fernando Bezerra, protagonista do longa-metragem. A dupla contou como se conheceu, falou sobre situações e simbolismos do filme e também sobre o atual momento do cinema nacional. O resultado você confere logo abaixo. Boa leitura!

    DE ONDE SURGIU A IDEIA?

    ”Há vários pontos de partida”, explica o diretor Eryk Rocha. “Um deles foi quando li Fernando Pessoa, por volta dos 14 anos. Foi quando tive a vontade de falar sobre a solidão, o tempo, a incomunicação e a velhice. São temas importantes na obra do Pessoa. Realmente comecei a escrever em 2004, quando participei do Festival de Cannes com o curta Quimera, em competição. Estava sentado em um café e aí comecei a ver todo aquele glamour, o vai-e-vem, os astros, o desfile de aparências... Ali comecei a escrever as primeiras linhas do argumento do filme, que é de um homem de 70 anos que não tem ninguém no mundo. Quem vai contar a história dele, irá marcar sua passagem pelo mundo? Foi muito neste intuito de falar do anonimato do homem em uma grande cidade, da relação deste homem com o mundo. Era um pouco o contraponto do que estava vivendo em Cannes naquele momento. Escrevi algumas páginas e retomei esta ideia três anos depois, convidando uma amiga (Manuela Dias) a escrever comigo o roteiro. O desejo em fazer este filme passa muito no poder do cinema em materializar a passagem de alguém por este mundo.”

    COMO SE CONHECERAM?

    ”Foi uma procura árdua”, assume Eryk Rocha. “Nunca quis um ator que estivesse muito presente em novela, queria um grande ator que não estivesse com o rosto tão marcado junto ao grande público. Foi o Walter Salles, produtor do filme, que me falou do Fernando, que tinha feito o treinador em Linha de Passe. Estava vendo muitos atores naquele momento e vi o filme. A gente se conheceu e, já no segundo encontro, levei a câmera digital e comecei a fazer com ele algumas experiências. Foi quando defini que seria ele.”

    ”Tem uma história curiosa em relação a isto”, comenta Fernando Bezerra. “Quando Glauber Rocha estava no auge da carreira eu já fazia teatro e tinha o sonho de filmar com ele. Morria de vontade, mas vivia em um universo muito distante do dele. Quando ele morreu me deu uma tristeza, pois não poderia mais realizar este sonho. Passam-se os anos, o Eryk me procura em São Paulo e decidimos que faria o filme. Comecei a fazer umas leituras de roteiro e a gente se encontrava na casa de uma amiga nossa. Aí um dia, na cozinha, o Eryk menciona o pai e pergunto quem ele era. Quando ele disse que o pai era Glauber Rocha eu quase caí sentado. Jamais imaginaria, tem muito Rocha por aí. Fui realizar o sonho com o DNA dele.”

    CENTRO DO RIO

    Como o filme nasceu no Festival de Cannes, perguntamos como surgiu a ideia de trazer aquela realidade para o centro do Rio de Janeiro. ”O Rio é a cidade onde cresci e tenho minhas reminiscências. Os lugares exibidos no filme fazem parte da minha memória afetiva. O curioso é que o Fernando nasceu no Rio e aqui morou até os 30 anos, depois se mudou para São Paulo. Então peguei esta minha vivência, ao mesmo tempo em que está entrelaçada com as memórias do Fernando, para compor um personagem que está muito enraizado com suas próprias memórias”, explica Eryk Rocha.

    O diretor falou ainda sobre as constantes mudanças que o centro passa, assim como a vida do personagem principal. ”A parte do centro do Rio onde o filme está concentrado está desaparecendo. Se a gente passa hoje por lá vê três torres gigantescas da Petrobras, que eram a obra retratada no filme. A cidade está em um processo acelerado de transformação e isso é muito interessante, porque o filme deseja mostrar este tempo em que estamos. A obra é uma metáfora desta transformação que acho que o mundo está vivendo. Estamos em um processo de reconfiguração, de novos atores no cenário mundial.”

    PRETO E BRANCO

    Eryk Rocha explica que a opção em filmar em preto e branco “não é de todo racional”. “Foi muito intuitivo, muito de um desejo. Remete a um cinema que eu amo que é o neorrealista, do Cinema Novo, do Cinema Marginal, Buñuel, Antonioni, Rossellini, Pasolini, filmes poloneses e cubanos... Já em relação ao filme, acho que o preto e branco traz um mistério, parece que traz algo de essencial à imagem. Ao mesmo tempo esconde as cores, então potencializa o mistério do personagem. Além disto cria uma tensão temporal que interessa muito neste filme, no sentido do personagem estar tão enraizado no passado e ir se libertando aos poucos. Os tempos coexistem no filme, o passado permanentemente ao lado do presente e do futuro. E tem o lado de ser um filme em preto e branco, mas contemporâneo, o que também remete a estes tempos que coexistem”, conta o diretor.

    VELHICE

    ”Quando cheguei no centro do Rio para fazer o filme tomei um susto, era um lixo. Fazia uns 20 anos que não ia lá, pelo menos”, diz Fernando Bezerra. “Este resgate foi uma experiência muito forte que tive com este filme. Você não se dá conta quando envelhece, para você é o mesmo cara de sempre. As outras pessoas, à sua volta, é que dizem e é muito agressiva a forma como o mundo te diz que você está ficando velho. Chega a ser violenta mesmo, até excludente. O filme trata deste processo de forma muito delicada, com uma outra visão, dizendo que a vida não é uma possibilidade só. A gente é que rotula tudo.”

    RÁDIO

    Transeunte conta, em várias cenas, com trechos de programas de rádio, escolhidos por Eryk Rocha antes mesmo do início das filmagens. “Esta dramaturgia radiofônica existia desde o argumento do filme. Quando escrevi o roteiro passei ao Édson Secco, que fez o som do filme, o trabalho de realizar um mapeamento. Sou um grande ouvinte de rádio, então ia ouvindo estas coisas e já ia incorporando no roteiro. Outras coisas inventando, mas sempre dialogando com este universo do rádio, que é surreal. Acho que fala muito da solidão do nosso tempo e é uma arte, ao contrário do cinema, ainda popularíssima. Na edição do filme a Ava Rocha, minha irmã, pegou todas as notícias que tínhamos à disposição e começou a integrar no filme, pontuando. A rádio é um elemento essencial, pois é o contato deste homem com o mundo e fala por ele. Ela está jogando permanentemente com a construção do personagem, tem um papel narrativo e cria um humor no filme em certos momentos, quebrando um pouco a densidade. E ao mesmo tempo de ser arcaico é também algo perfeitamente contemporâneo.”

    O CINEMA BRASILEIRO HOJE

    Questionado se rodar um filme em preto e branco e com uma história focada em um idoso seria um complicador para obter financiamento, Eryk Rocha disse que não. “O problema é mais estrutural e genérico, não é tão específico. O buraco é mais fundo. Poderia fazer um filme colorido sobre jovens e encontrar as mesmas dificuldades. O que mais me preocupa é incrementar as políticas públicas de produção, com clareza, privilegiando filmes que estão representando o Brasil no mundo e que despertam o debate cultural. Que lancem uma visão crítica sobre o país em certos temas e que estão buscando uma linguagem própria consistente.”

    Eryk ressalta que o problema maior do cinema brasileiro na atualidade é em relação à distribuição e exibição. “É o grande impasse que temos, no sentido do que é fazer um filme e quem vai assistir este filme. Creio que é urgente repensar o próprio espaço social do cinema. O desenho hegemônico de distribuição e exibição, com salas nos shopping centers e com ingresso caro, é um campo minado para o cinema brasileiro. Ele raramente irá ocupar este mercado, apenas em casos isolados e de exceção, como Tropa de Elite. Uma cinematografia forte não se constrói a partir de exceções, mas de um equilíbrio entre o cinema mais comercial e o de autor. O cinema não é a arte da indústria, é arte e indústria.”

    ”Acho que um filme como Transeunte, por mais autoral que seja, tem o potencial de se comunicar com muitas pessoas", disse Eryk Rocha. "Existe uma parte do cinema de arte que o público brasileiro nem sabe que existe. É preciso desmistificar um pouco esta ideia do que o público gosta ou não gosta e não subestimar as pessoas. Porque mesmo estes filmes mais comerciais, com atores conhecidos, não são populares. Fazem três milhões em um país de 200 milhões de pessoas. Então o cinema já não é uma arte popular faz algum tempo. Só um novo circuito de circulação de filmes e bens culturais pode resolver isto. Novas políticas públicas e um novo circuito exibidor, com salas digitais espalhadas pelo interior a preços baratos para que as pessoas tenham acesso. Este é o meu maior sonho, é o sentido de se fazer cinema. Um país do tamanho do Brasil tem 2300 salas, concentradas em 93% dos municípios e isto é popular? É preciso lembrar disto para pensar. O desejo é que um filme chamado Transeunte pudesse chegar aos transeuntes e é esta a contradição que a gente vive. De fazer um filme sabendo que ele estará restrito a um determinado circuito.”

    ”Um alternativa é não se limitar a estes espaços só de sala de cinema, que é o que tenho feito com meus filmes. Ele pode existir em outros espaços, como cineclubes, centros culturais, universidades, teatros... Em qualquer parede a gente pode exibir um filme. Tenho pelo menos oito cineclubes no subúrbio do Rio de Janeiro que passam meus filmes. Se a gente soubesse a priori qual será a reação do público, não só de quantidade mas de retorno, para que iríamos fazer? Este é o encanto do cinema, o imprevisível. Minha aposta é experimentar isto. Por menor que seja seu público, se você tocá-lo isto é grandioso. No mundo não é número só que vale, o público não é acéfalo. Acho interessante sair da ditadura do número, ele jamais pode ser o único parâmetro para justificar a existência de um filme. É uma burrice isso, muito grave, que infelizmente predomina na mente de algumas pessoas que controlam a cultura deste país", declarou Eryk Rocha.

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