Mahamat-Saleh Haroun é, antes de tudo, um privilegiado. Afinal de contas, é o primeiro diretor de cinema da história do Chade, pequeno país localizado no continente africano. Recém premiado no Festival de Cannes por seu mais recente filme, Um Homem que Grita, o diretor veio ao Brasil para promover seu lançamento. O editor do Adoro Cinema Francisco Russo conversou com ele, abordando o filme e a realidade do cinema em seu país de origem.
ADORO CINEMA: Você é o único diretor de cinema do Chade. Como é não ter qualquer referência anterior no cinema do seu país? O que te inspirou a seguir esta carreira?
MAHAMAT-SALEH HAROUN: É preciso ser bem louco e sonhador. Aos nove anos vi uma atriz maravilhosa, indiana, no cinema. Ela olhava de forma fixa para a câmera, sempre com um sorriso, então na época achei que ela sorria para mim. Fiquei fascinado e nunca esqueci este momento. A partir de então quis fazer filmes para reencontrar este sorriso, de forma a passar a mesma felicidade que tive naquele instante. Depois passei por um momento muito difícil, pois me machuquei na guerra civil do Chade e tive que viver refugiado, quase morto, em Camarões. Tive que fugir do meu país e acabei na França, onde pude aprender a fazer cinema.
AC: Até que ponto as experiências pessoais influenciaram seu modo de fazer cinema e as histórias que conta?
Mahamat: Como foi a causa do meu exílio e, consequentemente, de minha decisão em fazer cinema, a guerra civil está sempre como pano de fundo dos meus filmes. É um fantasma que sempre ronda meus pensamentos.
AC: Um Homem que Grita foi rodado no Chade. Até que ponto o governo local apoiou a produção do filme?
Mahamat: O cinema não tem grande importância no Chade, é considerado um setor artificial. Então não houve grande apoio.
AC: Acredito que até para a exibição do filme seja complicado, já que não existem muitas salas de cinema por lá.
Mahamat: Faz 30 anos que o Chade não tem salas de cinema, sumiram todas. O prêmio que ganhei no Festival de Veneza por meu filme anterior, Darratt, e agora a premiação de Cannes despertaram um orgulho nacional muito grande, que fez com que os governantes dessem atenção a isto. Afinal de contas, foi a primeira vez que o Chade esteve presente em festivais internacionais de prestígio. Isto despertou a consciência deles, que desenvolveram um projeto de inauguração de uma sala para dezembro. Por outro lado, foi criado um fundo de apoio à produção cinematográfica. O Chade agora tem petróleo e, com os royalties, se começou a disponibilizar um financiamento e apoio maior à produção cinematográfica. Por enquanto o investimento tem sido mais para séries locais, feitas para a TV. Há também o projeto de criação de uma escola de cinema.
AC: Você fez um filme sobre a situação atual do Chade sabendo, de antemão, que não teria como exibi-lo no próprio Chade. Não dá uma sensação de frustração?
Mahamat: Não há cinemas, mas há locadoras de vídeo. O país não pode viver com a ausência de imagem. Todos os meus filmes foram lançados nas locadoras do Chade, assim como exibidos na TV. Faço meus filmes para que sirvam como memória e história, não é porque não há salas disponíveis que eles não devam ser feitos. Tem muitos artistas no mundo que passam pela mesma situação, então não deixo que isto interfira na minha vontade de fazer cinema. Não faço filmes para o mercado internacional porque não tenho público interno, simplesmente faço um filme. Se houvesse salas no Chade, ele seria exibido lá.
AC: São poucos os filmes africanos que chegam ao Brasil e aqueles que chegam têm sempre um forte tom de denúncia. Como é o cinema africano em relação à diversidade? Existem filmes de entretenimento ou a realidade africana é tão mais importante que sempre acaba preponderando nos filmes?
Mahamat: Esta já é uma posição do cineasta. Na África também há filmes pipoca, mas são lançados direto em vídeo. Há muita pirataria e o público também gosta de divertimento. Mas como cineasta, no Chade, você não pode fazer um filme de entretenimento. A realidade é tão importante que não se pode empregar recursos e trabalho para rir, se divertir. É a minha posição como cineasta. Mas este tipo de filme é muito importante em termos de quantidade, vindos especialmente de Hollywood e da Índia.
AC: Qual foi o impacto, para a carreira do filme, do prêmio ganho no Festival de Cannes?
Mahamat: O filme foi mais vendido, já que Cannes é um selo de qualidade. O filme ganhou uma visibilidade e notoriedade muito grandes, que nenhum dos meus filmes anteriores teve. Nem mesmo Darratt, que ganhou o prêmio especial em Veneza. O impacto não foi tão forte quanto Cannes, que serviu como propulsor para sua distribuição em vários países.
AC: Já há planos para um novo filme?
Mahamat: Tenho um projeto que será rodado em Dakar, no ano que vem. É a história de um acontecimento recente, de um barco que jogou lixo tóxico na Costa do Marfim, perto da capital do país. Foi uma catástrofe ecológica, com muitos mortos. Mas, mesmo com a história se passando na Costa do Marfim, as filmagens serão no Senegal. E há a refilmagem americana de Darratt, mas esta não irei dirigir.