A vida de José Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1998, ao lado de sua esposa, a jornalista Pilar Del Rio. Este é José e Pilar, coprodução entre Portugal, Espanha e Brasil que traz um retrato íntimo sobre o casal. Após concorridas exibições no Festival do Rio e na Mostra de Cinema de São Paulo, o longa-metragem chega agora ao circuito comercial.
O Adoro Cinema falou com excluvidade com o diretor do filme, Miguel Gonçalves Mendes. Na entrevista ele fala sobre o difícil processo de realização do documentário e traz detalhes sobre a participação do diretor Fernando Meirelles, como um dos produtores. Boa leitura!
ADORO CINEMA: Por que fazer um filme sobre José Saramago e buscar como enfoque principal seu relacionamento com a Pilar?
MIGUEL GONÇALVES MENDES: Porque era exatamente o que achava que não existia. Não tenho nada contra documentários didáticos sobre o homem e sua obra, acho que são válidos para aprender. Mas achava que não existia algo que mostrasse quem era Saramago, como era a vida do ganhador de um prêmio Nobel. Além disto, desde adolescente sou fã de seu trabalho. Gosto da humanidade com que tratava seus personagens, mesclando o bem e o mal. E me incomodava muito as críticas que faziam a ele, que era polêmico, panfletário, antipático e arrogante, então quis tirar isto a limpo.
Havia também algo que ninguém falava, que era o papel da Pilar na vida do Saramago. Não só na divulgação, mas também na internacionalização da obra dele. Ela faz parte da vida do Saramago, então se você quer entendê-lo precisa também entender Pilar. Foi daí que surgiu a ideia. Já tinha feito um pequeno trecho com ele para meu primeiro filme, um documentário, então já havia um contato. Fui insistindo, insistindo, até que eles aceitaram.
AC: Tanto Saramago quanto Pilar eram pessoas públicas, então acredito que tenha sido complicado convencê-los a expôr sua intimidade. Como foi esta negociação?
Miguel: Creio que eles foram enganados, na verdade. Inicialmente estava previsto que o filme teria uma duração muito mais curta. Ao iniciar as filmagens, percebi que eles eram tão figuras públicas que não teria muito o que desvendar. Não seria o projeto que queria. Então decidi que o filme seria mais extenso e, para tanto, precisava estabelecer uma relação de confiança com eles. Não podia chegar e perguntar como era a relação com seu pai, por exemplo. Teria uma resposta educada, mas sempre há uma distância higiênica para manter a privacidade.
Na fase inicial achavam que eu era mais um chato qualquer, que queria fazer uma reportagem sobre Saramago. Tentei sempre ser educado, nunca ser abusado. Quando via que estava incomodando, parava a filmagem. No início fiz gravações com grandes públicos, especialmente as viagens. Foi quando percebi que estava filmando coisas que na verdade não precisava. Neste processo foi se estabelecendo uma relação de amizade entre nós, sobre o que o filme viria a ser. Quando enfim entrei na casa deles, aí a relação já estava estabelecida.
AC: Teve algum momento ou trecho específico em que eles pediram para que você não gravasse ou incluísse no filme?
Miguel: Teve algo bobo, que a Pilar vetou e que acho que, se fosse comigo, também não deixaria. Queria que os créditos iniciais surgissem com a imagem do Saramago nadando. Ele nadava todos os dias, era algo normal. Minha ideia era seguir um corpo nadando, só as costas, e as letras iriam entrando, até que no final você veria que era o Saramago. Pilar não deixou, disse que não queria uma câmera na piscina. Foi o único momento vetado. Tirando isto nunca houve nada, nem antes, durante ou depois. O que demonstra uma grande coragem e generosidade. Até porque duvido que exista muita gente que aceitasse fazer um filme sem impor limites, ao longo de quatro anos. São pessoas muito frontais, muito coerentes, que não têm medo de nada nem de se expôr aos outros. Basicamente, confiaram em mim.
AC: Algo que me chamou muito a atenção foi o relacionamento dos dois, o carinho existente mesmo nos diálogos mais banais.
Miguel: E a lucidez também. Eles não eram almas gêmeas, não era algo tipo romântico bobo. Eram pessoas absolutamente distintas, mas complementares. Saramago era super português, mais melancólico e sereno, enquanto que Pilar é espanhola, frontal, veemente, sem papas na língua. Eles se complementaram de forma muito bonita. Eles se conheciam há vinte anos, mas era como se fosse há sessenta.
AC: Não sei se você conhece, mas ele lembra um pouco um documentário brasileiro chamado Santiago, no sentido de revelar quem é que está ali demonstrado.
Miguel: Todo mundo fala deste filme, mas nunca vi. Infelizmente, o cinema brasileiro não chega a Portugal e o de Portugal não chega aqui. Há uma barreira muito grande.
AC: A versão inicial do filme era bem maior do que a exibida nos cinemas. Como foi o processo de seleção sobre o que retirar do filme?
Miguel: A primeira versão tinha seis horas, que foi a que o Fernando Meirelles viu. O Saramago apenas assistiu a versão de três horas. Escolher o que sair foi horrível, não desejo nem ao meu pior inimigo. Tínhamos 240 horas de material. Criamos uma estrutura de seis horas, que é a que mais gosto, mas era inviável para cinema. Fizemos então a de três e a mostrei ao Saramago e a Pilar, cheio de medo. Medo não por achar que eles iriam reclamar de algo, mas pela confrontação com suas próprias limitações físicas. Fiquei com medo de estar fazendo esta maldade, de certa forma, sobretudo porque o filme foi gravado numa fase complicada da vida deles. Depois cortamos mais um pouco e muitas vezes o que ficou de fora era melhor do que aquilo que permaneceu no filme. Se tirasse algo do início, destruía algo que estava perto do fim. Foi horrível.
AC: Obviamente, não se esperava que o Saramago morresse antes do filme estar pronto. Isto ter acontecido mudou de alguma forma a edição final?
Miguel: Sabíamos que isto poderia ocorrer desde o início, mas não era o esperado. Quando ele foi internado, no período relatado no filme, todos temeram o pior, inclusive o próprio Saramago. Acho até que uma das coisas mais bonitas no filme é sua recuperação. Quando ele morreu foi horrível, ficamos todos muito abalados. Falei então com a Daniela, minha produtora, e assistimos o filme para ver qual seria a leitura que teríamos dele após sua morte. Procuramos não tocar em nada, pois senão seria um processo esquizofrênico e já estávamos há um ano e meio editando. O filme é o que é e foi feito dos vivos para os vivos. É claro que se ele estivesse vivo iríamos comemorar juntos e ficaria feliz, mas algo que queria manter era a mensagem de alguém que esteve mal, mas se recobrou e continuou vivendo intensamente. Esta era a imagem que passava antes dele morrer. Na verdade, acho que continua exatamente igual. A diferença é que quando você assiste o filme já está com saudades dele, o tempo todo.
AC: Como foi a entrada do Fernando Meirelles no projeto?
Miguel: Coloquei o filme três vezes no Instituto de Cinema de Portugal, sem sucesso. Foi então que enviei a proposta para uma das produtoras que mais admirava, a El Deseo, do Pedro Almodóvar. Eles quiseram me ouvir, gostaram e entraram no filme. Quando voltei a Portugal, o Instituto resolveu também apoiar. O problema que tive foi que as filmagens foram mais extensas do que o programado e Saramago adoeceu, então os custos todos dispararam. Estava sem grana alguma, na bancarrota total. Fernando então foi a Lisboa exibir Ensaio Sobre a Cegueira para o Saramago e apresentei o projeto a ele, pedindo para falar com alguém da O2 Filmes. Marcamos uma reunião, ele gostou muito e então entramos em um edital, para coproduções entre Portugal e Brasil. Foi assim que ele entrou no filme.
AC: O filme ainda não estreou em Portugal?
Miguel: Estreará em 16 de novembro, dia do aniversário de Saramago. Era algo que estava combinado com o próprio Saramago.
AC: Como está a expectativa do público português em relação ao filme?
Miguel: Não faço ideia. Não sei em quantas salas estreará e isto é sempre uma incógnita. Há uma antipatia generalizada do povo português com o cinema português, então não sei. O filme foi exibido na abertura do Doc Lisboa, um dos festivais do gênero mais importantes na Europa. Foi a primeira vez que um filme português abriu o festival. Foi uma loucura, com ingressos esgotados, aplausos em pé durante 10 minutos. Tenho esperança que ele vá bem, até porque tenho um monte de dívidas a pagar.
AC: Como tem sido a participação da Pilar, na divulgação do filme? Ela esteve presente na sessão ocorrida no Festival do Rio.
Miguel: Ela tem apoiado assistindo o filme e dando entrevistas. Algo que desde o início deixei claro é que não queria dinheiro da fundação para fazer o filme. Não quis que ficassem com a impressão de que tinha feito uma obra de encomenda ou de homenagem. Aliás, acho que o filme não é nada disto, não é sobre a ideologia de um homem. É um filme bastante honesto, em todos os sentidos. Entretanto, acho que para Pilar deva ser bem doloroso, por assistir a vida do homem com quem viveu até pouco tempo atrás. Mas também é uma prova do amor dele a ela. Lembro de uma frase que Saramago me disse, quando viu algumas das cenas do filme montadas, que estava lhe devolvendo vida e memória. Acho que este é o impacto que o filme traz para Pilar agora. E para todos nós, de alguma forma.
AC: Já tem planos para um novo filme?
Miguel: Documentários, nunca mais! Tanto este como outro que fiz antes demoraram muito tempo até serem concluídos. Este me esgotou, emocionalmente e financeiramente. Foram quatro anos de filmagens e um ano e meio apenas de edição, tinha a estranha sensação de vida suspensa. O que acontece com os documentários é que, por mais que você tenha escrito o roteiro, a realidade não deixa que seja exatamente como você previu. Em ficção você tem uma história, boa ou má, define os planos e pronto. Tenho quatro projetos em vista, mas ainda preciso estudar com minha equipe qual deles tem viabilidade. Um deles é uma história incrível, que se passa no Marrocos, Lisboa e no nordeste brasileiro. Só que é um filme tão caro que talvez só consiga fazer daqui a dez anos.