É fato que José Mojica Marins não é unanimidade entre o público em geral. Há aqueles que o denominam como, no mínimo, "estranho" ou "louco" pelo seu personagem de unhas grandes que fez um sucesso estrondoso ao longo das últimas décadas. E podem falar o quanto quiser que o Zé do Caixão estava sumido, que ninguém mais ouvia falar do cara ou que este, quando ainda era comentado, fazia papel de ridículo pelas suas aparições. É inevitável dizer que Mojica criou um personagem que ficou marcado na história do cinema brasileiro e que dificilmente um personagem causará tamanho reboliço quanto ele e suas maluquices.
Quarenta anos depois de sua segunda "fita" (como ele mesmo gosta de chamar os filmes), Mojica está de volta com Encarnação do Demônio. Pois bem, o que esperar? Um show trash, com direito a dedos nos olhos das vítimas, enforcamentos com as pessoas morrendo de boca aberta e várias outras torturas insanas? Enfim, esta foi a proposta dos dois primeiros filmes que, de uma maneira ou outra, conseguiram levar o nome Zé do Caixão a um lugar de destaque na mídia em geral e, com certeza, chamou a atenção. Agora, a situação é outra. Ou não. A proposta trash não deixou de estar escancarada em Encarnação do Demônio, apesar de Mojica deixar claro que não é o adepto mais fervoroso do termo "trash".
A diferença é que agora temos o verdadeiro "trash com dinheiro" (créditos a Eneida Barbosa pelas sábias palavras!). Uma verdadeira produção de Paulo Sacramento e dos irmãos Gullane que maravilhosamente transformaram o que antes beirava o banal devido a tamanha precariedade em algo que chega a ser considerado magnífico e admirável. O que se vê em Encarnação do Demônio é algo surpreendente em diversos aspectos. Tudo bem, a premissa não mudou. De novo, Zé do Caixão busca encontrar a mulher perfeita que irá gerar seu filho, responsável pela continuidade do mal na Terra. É um argumento teoricamente sem peso, mas ganha muita força quando visto em uma nova roupagem. Levando em consideração que o roteiro original de "Encarnação" foi escrito há quarenta anos e durante várias vezes foi alterado para se encaixar na atualidade, a trama prende e consegue alcançar um propósito que surpreende e não deixa de ser interessante, já que novamente Mojica consegue deixar questionamentos na cabeça do espectador e instigar sem fatos muito relevantes, mas que ainda assim constróem uma bela seqüência para o desenrolar da trama.
Conta ainda a favor do roteiro o bom aproveitamento de personagens e situações descritas nos filmes anteriores, deixando assim conflitos em aberto para serem solucionados ao longo do filme. Uma boa decisão de Mojica, que assim mantém o ritmo e a relação entre as personagens a todo momento. Isso sem contar os bons e oportunos momentos de humor, que ajudam a manter o público ligado e interessado nas cenas que estão por vir e não tornar a história maçante. Quanto à produção do longa, conforme já dito, é louvável e impressionante constatar o estrago positivo que um bom investimento é capaz de fazer quando mesclado com boas idéias. Já deixo aqui um breve conselho que acredito já ser de conhecimento da maioria dos espectadores: aqueles que não são fãs incondicionais de sangue, tripas, cabeças abertas, insetos e coisas do gênero, nem ousem sentar na poltrona. Será perda de tempo e paciência.
A produção de Sacramento e dos Gullanes traz um teor de realidade que choca e, ao mesmo tempo, inova não só para o padrão cinematográfico brasileiro, mas também para a mente de Mojica, que consegue retratar em imagens idéias completamente alucinantes e absurdamente vertiginosas. Como se já não bastasse a qualidade evidente dos aspectos já citados, Mojica ainda conta com o talento e o brilhantismo de Milhem Cortaz, que lidera um elenco recheado de surpresas boas, como o já falecido Jece Valadão. Imagino apenas como deveria estar a cabeça de Cortaz durante as filmagens, já que este estava em "Encarnação" e, ao mesmo tempo, em Tropa de Elite. Definitivamente, qualidade e dedicação da equipe nítidas e invejáveis. É claro que uma sujeira aqui e ali são perceptíveis, mas nada que comprometa ou estrague o todo.
Em geral, Mojica realiza um trabalho peculiar e interessante. É óbvio que não atrai grande parte do público, mas para os fãs do gênero vale muito a pena conferir. Arrisco dizer que um quarto filme não seria uma idéia tão absurda, já que trata-se do mestre do gênero e um dos poucos ainda remanescentes da velha guarda do cinema brasileiro em geral. Mojica merece no mínimo respeito e admiração por completar uma trabalhosa trilogia perante tantas dificuldades. Portanto, salve sr. Mojica Marins e o cinema brasileiro!