A diretora pernambucana Renata Pinheiro voltou ao Festival de Roterdã neste ano com seu novo filme, Carro Rei. Renata já havia participado do festival em outras ocasiões, com o longa-metragem Açúcar em 2018, e o curta Praça Walt Disney em 2012, ambos co-dirigidos pelo parceiro de longa data Sérgio Oliveira, que também é co-roteirista e produtor de Carro Rei. Seu trabalho atual participou da Big Screen Competition, mostra que combina filmes populares e de arte considerados com potencial de público nos cinemas. O prêmio da categoria foi entregue ao filme argentino El Perro Que no Calla durante premiação ocorrida no último domingo (07/02).
Festival de Roterdã: Filme brasileiro “Madalena” na disputa pelo maior prêmio (Entrevista exclusiva com diretor)O filme nos apresenta Uno (Luciano Pedro Junior), que desde pequeno possui uma relação forte com carros: ele consegue falar com as máquinas. Após um acidente com o carro da companhia de táxi de seu pai, o veículo é guardado na oficina de um tio. Anos depois, enquanto passa por problemas com o pai, o agora jovem Uno propõe ao seu tio Zé Macaco (Matheus Nachtergaele) que eles revitalizem o velho carro, transformando-o no Carro Rei, futurista e cheio de tecnologia. Logo, a máquina passa a exercer sua consciência e cria um movimento de revolta envolvendo carros e humanos contra uma lei que proíbe a circulação de veículos antigos pela cidade.
Não é de se espantar que Carro Rei foi recebido como um dos filmes mais loucos da competição. O filme trabalha muito o humor baseado no bizarro, enquanto tece críticas sociais, políticas e comportamentais nesta história livremente explorada por Renata Pinheiro. A cineasta conversou exclusivamente com o AdoroCinema, comentando sobre a recepção do filme, relação da história com a realidade e fatos da produção. Confira a entrevista abaixo:
ADC: Como você avalia a experiência do filme no festival?
RP: O filme está tendo uma recepção muito positiva. Estão saindo espontaneamente muitas matérias no mundo inteiro falando bem do filme, na França, na Espanha, até mesmo na Ásia. Os meus filmes sempre têm belíssimas carreiras, mas eu acho que a Big Screen do Festival de Roterdã é um excelente lugar. Quando me selecionaram para essa competição, achei perfeito, porque são filmes que eles consideram independentes mas que acreditam que têm um potencial de público. Eu faço cinema independente, mas também quero cruzar uma fronteira e ampliar o meu público. Inclusive, estamos em negociação com um vendedor internacional.
ADC: Em uma entrevista para o festival, você comentou que o filme começou a ser escrito há 7 anos, quando viu um monte de carros estacionados na calçada, no lugar de pedestres. Como o roteiro se desenvolveu? E a partir de quando veio a ideia de incluir referências e críticas diretas ao contexto mais recente do Brasil e do mundo?
RP: A primeira vez que o filme entrou em um edital foi em 2015. Eu filmei em 2019 e o último tratamento mais intenso do roteiro foi no final de 2018. Naquela época, eu achei que era tão terrível o que a gente estava vivendo [politicamente] que esses acontecimentos tinham que influenciar o filme, porque é tudo muito forte e a gente como artista não pode ficar isento de crítica. O filme não é sobre essa história recente brasileira, mas inclui algo parecido com o que aconteceu, um movimento espontâneo social que gritava por direitos legítimos e que foi desvirtuado completamente.
O filme trata muito também de ficar alerta quanto à tecnologia na vida, tecnologia que nem sempre está em boas mãos. A forma como usaram o WhatsApp e esses grupos todos disseminando informações falsas mudou o destino de vários países. Não é condenar a tecnologia, ela não tem um caminho de volta de forma alguma, o homem é um ser tecnológico. Mas é como utiliza-la, como a gente evoluir junto com ela e ela junto com a gente. Porque pode ser também uma arma que se volta contra nós mesmos.
ADC: A direção de arte no filme é uma qualidade à parte, por ter construído todo esse universo e personagens fantásticos. Seguramente isso vem muito do seu histórico como diretora de arte e artista visual. Poderia comentar um pouco sobre esse aspecto do filme?
RP: Eu fui pesquisando paralelo ao roteiro muito como seria visualmente o filme e esse carro. Mas aquilo também me ajudou a me dizer o que eu não queria. A Karen Araújo, diretora de arte, trabalha comigo há muito tempo, então a gente se conhece bem e fala a mesma língua. E o Fernando Locket também é meu fotógrafo desde o meu primeiro longa. Foi um work in progress. A coisa mais difícil foi “como esse carro vai ser”, porque a gente não pode inventar uma coisa que não consiga concretizar, por falta de recursos mesmo. E aí foi indo, foi o filme em que mais trabalhei.
Outra coisa muito difícil foi encontrar o ferro velho. Eu me lembro que eu, já desesperada, fui andar pelo Google Earth e encontrei esse lugar em Caruaru [onde foi filmada a maior parte do filme], e achei uma casinha do lado de um autódromo. A gente não acreditou, porque já tinham umas carcaças de carro velho lá - uma vez que era o antigo autódromo da cidade, também utilizaram para deixar carros velhos. A gente não tinha dinheiro pra construir do zero, parte daquilo ali era uma construção muito velha e a gente estendeu com lonas e telhas pra deixar aquele galpão maior. Não foi nada muito fácil, mas eu acho que eu estava junto das melhores pessoas.
ADC: O Matheus Nachtergaele tem uma presença forte no filme. Como foi trabalhar com ele?
RP: Nós somos amigos pessoais há bastante tempo e já fizemos muitos trabalhos juntos. Eu fui diretora de arte de A Festa da Menina Morta. Mas eu nunca tinha convidado ele. E aí surgiu esse personagem Zé Macaco, que, realmente, se ele não pudesse ou não quisesse fazer, eu não saberia o que fazer, porque é muito específico e é um tom de interpretação dificílimo. Ele soube exatamente onde se colocar, quem vir o filme vai perceber a genialidade dele. Sou muito grata e foi muito legal trabalhar com ele, e acho que foi uma experiência boa para ele também ter tido esse personagem.
ADC: As filmagens foram feitas também durante a pandemia?
RP: No fim de 2019, eu fiz um corte do filme e, em 2020, eu comecei a trabalhar realmente na montagem, e houve o lockdown. Paramos tudo e retomamos em agosto, percebendo que faltavam algumas partes que não conseguimos filmar antes por falta de grana. Então, quando caiu a primeira onda da pandemia, em outubro, conseguimos articular uma equipe mínima pra ir pra Caruaru de novo e filmar 4 dias, com todos os protocolos de segurança e testes da equipe. Daí eu consegui fechar a montagem e mandar pra Roterdã e outros festivais. Roterdã acenou positivamente em 15 dias.
ADC: Dentro de um contexto de dificuldades causado pela pandemia, como você vislumbra a carreira de Carro Rei daqui pra frente e dos seus próximos projetos?
RP: A gente não está querendo lançar ainda, porque queremos colocar nos cinemas. Então, esse ano é para a gente concorrer em festivais. A gente deve realmente começar a ir pra salas de cinema em 2022, por conta da pandemia mesmo. Mas eu quero muito fazer um bom festival no Brasil pra mostrar o filme pro público brasileiro. E eu tenho um longa novo, que chama “Vago”, para rodar e também devo fazer alguns trabalhos de direção pra uma série neste ano.
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