Em passos muito lentos, a indústria cinematográfica — majoritariamente branca — está avançando em rumo à diversidade racial na sétima arte. Embora a presença negra representada nas telonas ainda seja extremamente insuficiente, grandes nomes surgiram e imprimiram suas histórias com o objetivo de trazer reflexões sobre questões sociais urgentes.
Artistas como Spike Lee, Viola Davis, Ava DuVernay, Barry Jenkins e Jordan Peele se colocam na linha de frente para levantar discussões sobre racismo e suas ramificações, tanto no cinema quanto fora das telas. Entre um dos posicionamentos que geraram grande repercussão, destaca-se a declaração de Jordan Peele sobre protagonismo branco em filmes.
Em março de 2019, durante evento em Los Angeles, no Upright Citizens Brigade Theatre, o primeiro vencedor negro do Oscar de Melhor Roteiro Original, por Corra!, contou que não se imagina escalando pessoas brancas para protagonizar suas produções. O astro ainda afirma que a decisão não significa que não goste de brancos, mas que “já viu esse filme antes”. E afinal, o que o cineasta quis dizer com isso?
Racismo reverso não existe
Apesar da mensagem óbvia em suas palavras, sua fala foi criticada por pessoas que trataram o tema como “racismo reverso” e questionaram o impacto negativo que teria se um cineasta branco dissesse que não escalaria protagonistas negros. No entanto, é importante mencionar que racismo reverso não existe. É historicamente — e estruturalmente — impossível que grupos raciais ou étnicos minoritários forneçam quaisquer tipos de opressão contra pessoas brancas, principalmente porque estes últimos citados sempre estiveram no topo das relações de poder na sociedade.
Também vale pontuar que, dentre tantos outros fatos para contra-argumentar tal afirmação, pessoas brancas nunca sofreram imposições de valores sociais, culturais ou religiosos por negros, nem genocídio de seu povo por causa da cor de suas peles e, tampouco, escravidão. Não há relatos históricos que apontem que dominados tenham exercido qualquer privilégio ou poder enquanto estrutura contra seus dominadores. Logo, Jordan Peele, um homem negro, de forma alguma poderia se enquadrar como opressor de pessoas brancas.
“E se um branco dissesse que não escalaria negros para protagonizar seu filme?”
Quanto ao pensamento “e se fosse ao contrário?”, também torna-se igualmente inválido. Nenhum cineasta branco precisa declarar publicamente que não se vê escalando negros como protagonistas em seus filmes, pois o posicionamento é perceptível em suas obras ao longo dos anos, na cor da pele de seus personagens principais, em seus roteiros e equipe por trás da produção. A indústria cinematográfica sequer necessita de um pronunciamento desse tipo quando o próprio Oscar, maior premiação de cinema no mundo existente desde 1929, só concedeu apenas 44 de suas 3.164 estatuetas para atores e cineastas negros em todas as 92 edições. Além disso, a categoria que mais premiou artistas negras no Oscar foi a de papéis coadjuvantes, com o total de oito vitórias.
OscarSoWhite: O que aprendemos após quase um século de segregação?Portanto, a narrativa contrária à fala de Jordan Peele já existe em toda a trajetória do cinema, sem que nenhuma frase seja verbalizada. Está presente desde o lançamento de O Nascimento de uma Nação, em 1915, um dos primeiros longa-metragens da história, que coloca a Ku Klux Klan em uma posição heróica por dizimar pessoas negras (representadas por atores brancos pintados com maquiagem preta, o famoso blackface). Assim como continua sendo um comportamento vigente até hoje, no século XXI, em filmes sobre racismo sendo contados através da ótica de personagens brancos, e também por grandes premiações que esnobam obras de cineastas negros mesmo que tenham sido fortemente aclamadas pela crítica.
Mudanças na representação negra em Hollywood
E como se a falta de papéis de destaque para pessoas negras não fosse problemática o suficiente, o excesso de estereótipos sociais atribuídos aos seus personagens também são incômodos. Com a incapacidade da indústria em conceber papéis para negros além do espectro que gira em torno de empregados, escravizados, criminosos e extremamente pobres, Jordan Peele se coloca como agente de integração de atores pretos a um cinema que represente as esferas da negritude em um novo ângulo.
Buscando gerar mudanças na predominância branca em Hollywood, o cineasta tem reinventado a narrativa negra no cinema, trazendo excelentes atores aos holofotes e dando oportunidade a um protagonismo que não foi suficientemente oferecido a pessoas pretas. Em uma indústria cinematográfica que apaga ou embranquece raças e etnias para não escalar negros, indígenas ou asiáticos, o posicionamento de Jordan Peele se torna cada vez mais necessário. Afinal, não há nada mais legítimo do que negros sendo os próprios porta-vozes de suas vivências e mostrando que podem ser retratados em diversas narrativas e gêneros, ocupando lugares além do que os estereótipos permitem.
Quanto aos empregos da branquitude hollywoodiana, não há o que se preocupar. Estes jamais ficarão sem seus papéis de destaque e inúmeras indicações a prêmios só porque Jordan Peele não pretende contratá-los como protagonistas. Inclusive, toda a indústria está interessada em ter brancos ocupando o máximo de suas telas e, portanto, suas posições de privilégio continuam seguras. A declaração do cineasta não oferece ameaças aos atores brancos, mas oportunidades à pluridade e representação justa aos negros.