Casa de Antiguidades, filme brasileiro dirigido por João Paulo Miranda Maria, foi selecionado para diversos festivais de cinema este ano. Da seleção de Cannes 2020 até chegar à Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o drama protagonizado por Antônio Pitanga traz diversas reflexões acerca do nosso próprio país.
O filme traz Pitanga como um "forasteiro local", um homem solitário e isolado que é obrigado a sair de Goiás para trabalhar em uma fábrica no Sul do Brasil. Em sua rotina na nova comunidade, ele encontra poucas pessoas para se relacionar e não entende o idioma mais falado no local, até pelos próprios chefes: o alemão.
Através do poderoso personagem Cristóvão, interpretado de forma ilustre por Pitanga, o espectador é convidado a adentrar em um universo que não cabe em uma única época. Com isso, há uma mistura de elementos do passado e do futuro em um presente que, além de cruel, desvaloriza a humanidade das pessoas.
Casa de AntiguidadesAproveitando a ocasião das exibições on-line durante a 44ª Mostra SP, o AdoroCinema entrevistou o diretor de Casa de Antiguidades. Leia na íntegra abaixo.
Cinema e realidade às vezes se confundem, e este é o caso de seu filme. Como você define Casa de Antiguidades dentro do nosso contexto atual?
Eu comecei a escrever o filme em 2015, mas já vinha sentindo um pouco todo esse momento que estamos vivendo agora. De certa maneira, já sentia um movimento conservador que aparecia ao horizonte. Então, vejo que o filme é um produto disso. Acabei trazendo muito do que eu vivi no interior de São Paulo, assim como também trouxe toda essa bagagem que sentimos nos dias atuais. Ao mesmo tempo, há esse lado ficção, quase uma ficção-científica, digamos assim, que parece a previsão de um futuro com cara do passado. A previsão de um futuro meio "retrô", e que a gente sente pela própria produção e direção de arte do filme. Nós fizemos isso propositalmente, imaginando quase um estilo nos anos 70. Houve uma preocupação de fazer algo que parecesse ser de décadas atrás, no momento da ditadura e repressão militar; um momento conservador com cara futurista. A ficção pode parecer exagerada, mas na verdade tudo é fruto de uma realidade - inclusive todas as locações do filme são reais. O movimento do Sul do país também existe, assim como esse fascismo e momento extremista e intolerante que estamos vivendo hoje em dia.
É interessante ver a estética moderna e rústica ao mesmo tempo, como na roupa que Pitanga usa nas primeiras cenas do filme...
Eu já imaginava esse lado mais surreal no filme. Existe uma licença poética na roupa de proteção de temperatura que eu trago para o laticínio, um ambiente quase nuclear e tóxico, digamos assim. É como se ali tivesse uma hostilidade enorme, e realmente há. O filme se inicia com uma provocação, com o personagem interrogando a si mesmo quanto a onde ele está, observando a palma de sua mão através da roupa furada.
Como você chegou até Antônio Pitanga? Essa ideia surgiu já quando você iniciou o processo de roteiro?
Desde o começo eu já pensava nele. No roteiro eu escrevia como Antônio, inclusive. Durante a pesquisa, mudei o nome para Cristóvão, mas eu sempre imaginei Pitanga neste papel. Eu sempre o descrevia como um homem rústico, do interior, que fosse quase como uma pedra bruta que mais esconde do que mostra seus sentimentos. Esse personagem carrega em si a história de uma cultura, um povo. E Pitanga sempre teve uma presença muito forte. Eu precisava e queria alguém que realmente trouxesse não só uma história por vivência de vida, mas alguém que trouxesse essa história do cinema brasileiro. Era importantíssimo trazer elementos quase invisíveis, mas que seriam perceptíveis na textura do filme. É justamente a vivência do tempo da história do cinema que me interessava. E não havia outra pessoa em minha mente que tivesse tudo isso como Antônio Pitanga. Só dele estar ali presente é como se eu tivesse a história do cinema em pessoa ali, ainda mais por ele ser o protagonista absoluto do filme - algo raro em sua filmografia.
O filme toca bastante no ponto da identidade, sobre não esquecer das próprias raízes. Cristóvão é um peixe fora d'água. Como você chegou ao ponto de dizer muito sobre preconceito e isolamento sem palavras?
O Cristóvão é perdido tanto no espaço quanto no tempo. Sua identidade foi perdida, tratada com preconceito, jogada fora mesmo. A própria casa abandonada é um reflexo dele, é um lugar onde ele se enxerga e se sente acolhido. O valor de sua cultura foi roubado. Para mim, era muito importante trazer referências visuais (como na cena em que ele olha a janela da casa e vê a si mesmo). Durante a pesquisa do filme, fui a Pirenópolis e àquela região de onde veio esse personagem, e havia toda uma questão espiritual também, envolvendo a figura da entidade do caboclo boiadeiro, na própria estátua naquele momento na janela - uma figura mista entre o vaqueiro brasileiro com o próprio boi. A figura do caboclo boiadeiro vem com significado de revolução, de ciclo. Como a música já diz, é preciso morrer para nascer de novo. E aquela música é realmente sobre religião, tocada no templo de candomblé. Eu tenho interesse em trazer histórias que dialogam com o espírito. O filme tem esse processo ritualístico que é trazido por esses elementos, essa entidade, e que vem ali com o berrante, um objeto de comunicação de Cristóvão para com sua ancestralidade longínqua. O personagem está a todo o tempo sendo sabotado, sua memória se perde até ele mesmo perder sua própria identidade. Ele, então, vai para um lado animal, brutal.
Agora, falando sobre festivais de cinema, como você se sente com a presença de Casa de Antiguidades no Festival de Cannes neste ano tão atípico, com a falta de contato e troca, e também com as exibições on-line em Toronto, San Sebastian e Mostra 2020?
É uma grande honra, especialmente pelo fato deste ser meu primeiro longa-metragem. Desde o princípio eu procurei seguir o caminho autoral. Não por ser radical ou diferente, mas para formar a minha própria assinatura e mostrar para o que eu vim. Quanto mais arriscamos, melhor. Junto a isso, a essa conquista, estamos vivendo uma crise sanitária sem precedentes. Vejo que é um momento em que a sociedade deve repensar seus valores, qual será a sociedade de amanhã. Por isso, eu também pego este momento para pensar em qual será o cinema de amanhã. Estou começando e faço parte de uma nova geração do cinema brasileiro que precisa mostrar uma assinatura, uma voz. Vejo tudo isso como um desafio conjunto. Confesso que me sinto num furacão, com meu primeiro longa neste cenário todo. Eu nunca imaginava que meu filme estaria presente em uma lista da Variety com os possíveis filmes a serem indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2021. Mas existe algo que eu noto desde quando comecei a dirigir os meus curtas: quanto mais eu assumia uma voz muito pessoal, mais parecia que o lado do entretenimento e Hollywood se interessava. Arriscar no lado artístico para ter uma assinatura única faz com que seu trabalho seja reconhecido também. E o que eu mais quero é representar o cinema brasileiro.