A carreira de Gilberto Gil ganhou os cinemas em um emocionante documentário dirigido por Lula Buarque de Hollanda. Trata-se de uma seleção de registros históricos de apresentações musicais do cantor em shows, festivais, clipes e ensaios, alternadas em telas com notas curiosas e explicações que o próprio artista resolveu revelar. Gilberto Gil Antologia Vol. 1 é um livro de memórias que destrincha como aconteceram as composições de músicas que são parte integrante da cultura brasileira, como "Cálice", "Tempo Rei" e "Expresso 2222". E de acordo com Gil, está na época certa de ser lançado.
"São 600 canções, 50 e tantos discos, quase 60 anos de carreira. Hoje em dia dá para pensar em uma antologia, o que há 10, 15 anos até podia se fazer algo mais modesto, hoje é possível fazer radiografias", disse Gilberto Gil em entrevista exclusiva ao AdoroCinema.
"Entender o que estava ali dentro, o que tinha naquela fissura no osso da existência, que apareceu naquele verso, naquela canção, aquele músculo mais desenvolvido pelo exercicio do afeto. Um pouco da minha entrevista fica ali como aparelho de raio x, aquela imagem que você nunca entendeu direito o que é, aquele carocinho ali na alma", revelou o cantor, poéticamente.
Gilberto Gil recebeu o AdoroCinema em sua produtora, Gege Produções, na Zona Sul do Rio de Janeiro, ao lado do cineasta Lula Buarque de Hollanda, durante o Festival do Rio 2019. O filme teve sua estreia na Première Brasil do evento e chegará ao Canal Curta! no próximo dia 23 de dezembro, às 22h40. Os dois dissertaram, por quase 20 minutos, sobre a resistência do cinema brasileiro, as decisões recentes da Ancine e sobre um possível filme retratando a vida de Gil.
Antologia
Lula Buarque de Hollanda explica que o canal Curta! propõs fazer o projeto com o artista, reunindo algo que ainda não tinha sido feito. "O Gil deu liberdade total, passamos dois anos pesquisando, na França, Itália, em acervos da TV Globo, da TV Cultura". O diretor comenta que, após juntar todas as músicas, sentiu a necessidade de ter insights do artista sobre cada momento que se passou.
"Gostaria de pontuar que [Gilberto Gil Antologia Vol. 1] trabalha na nova fronteira entre televisão e cinema. Ele se apropria de uma linguagem cinematográfica do ponto de vista que ele não tem legenda, as interpretações são longas, os tempos são mais aprofundados", Buarque de Hollanda levantou um interessante debate, comentando que, apesar disso, quase todos os registros vistos em tela são provenientes da televisão. "Mas é uma TV dos anos 70, que tem outra linguagem", comentou, ao que Gil complementou, rindo: "Isso que já estava impregnado pelo cinema novo, que já era uma televisão culta".
Para Gil, as novas linguagens cinematográficas e, por que não, fotográficas são "desapaixonadas". "[Hoje em dia] a cultura imagética quebrou a fronteira. Pode-se ver um filme no cinema, no celular, na televisão...", comentou Lula, ao que Gilberto criticou, bem-humorado: "Com as câmeras, fotografia, antigamente, era preciso ter muita paixão. Agora não precisa ter. Como eu digo na música Máquina de Ritmo, 'Processo de algoritmos padrões, Múltiplos binários e ternários, Quartenários sem paixões', essa tecnologia de hoje em dia desapaixona, permite abordagens e aproximações mais práticas, mais técnicas, porque a tecnologia está avançada", disse sobre qualquer um usar um celular e fazer suas fotos e filmes de qualidade; o que antes exigia saber mexer em lentes e foco e, segundo ele, demandava "paixão".
Resistência do cinema brasileiro
Gilberto Gil Antologia Vol. 1 acompanha o surgimento de muitas das músicas do cantor e de seus contemporâneos como um contraponto ao Golpe de 1964. O ex-Ministro da Cultura fez uma analogia entre as canções na época e o papel do cinema brasileiro atualmente como forma de resistência na sociedade e na política do Brasil — incentivado, principalmente, pelo advento da internet.
"A resistência do cinema brasileiro ultimamente está associada a um conjunto amplo de resistências que não estão necessariamente mais ligadas a grupos de realização estética. A sociedade hoje faz parte desses campos que sentem necessidade de resistir a alguma coisa. Resistência mais como capacidade de manter aberturas para o desenvolvimento futuro do que propriamente recuperações mais saudosistas do passado ou à realização de uma teimosia ideológica ou qualquer coisa desse tipo. Está muito mais ligado à pulverização de modos de compreender, de entender, que é a característica da sociedade moderna pelo crescimento dela em termos de volume humano, sete bilhões de pessoas no mundo, e o crescimento das formas de linguagem, dos modos de expressar essa grandeza quantitativa do momento. Então são muitas qualidades novas, de modo de comunicar. Já existiam embriões disso em 1964 mas de lá para cá... Em 64 não havia internet, isso é uma mudança absurda", comentou, rindo.
O artista aproveitou para comentar as recentes decisões da Ancine de retirar cartazes de filmes brasileiros de sua sede e de vetar a exibição de A Vida Invisível. "É bobagem", disse Gilberto Gil. "Essa mania que esses campos conservadores no Brasil e no mundo desenvolveram recentemente de querer controlar as culturas diversas, amplas, através da imposição de monoculturas. Por exemplo, esse pessoal que está ai à frente das questões culturais do Brasil tem uma mania um pouco informada pelo retrocesso também religioso com a tentativa de se livrar desse desenvolvimento amplo do campo dos comportamentos, dos costumes", comentou. "Aqueles cartazes [de filmes brasileiros] simbolizam uma época, um cinema que era feito em nome desse avanço, dessa capacidade de desbravamento, em nome dessa liberdade de adotar pluralismos, vivências existenciais. Tudo isso que vai de encontro a esse propósito de imposição de uma visão monocultural de uma 'teologia da pequenez'. Querem colocar o pequeno, o menor, o menos amplo num padrão que deve ser adotado por tudo e por todos. Não vai rolar", disse o ex-Ministro da Cultura.
"São outros tempos", completou Lula Buarque de Hollanda.
Baseado em fatos
Enquanto Gil acabou de ganhar um documentário sobre sua carreira, perguntamos se ele espera ver uma produção ficcional sobre sua vida. "Acho que daqui a pouco vai aparecer um filme sobre a vida do Gilberto Gil", disse o próprio, certeiro. "Existem algumas propostas, é algo que está muito em voga, muitos ícones e artistas estão sendo retratados através de filmes. E de novo contribui ser uma vida suficientemente extensa para fazer essa montagem, de tais momentos, tais curvas e retas", afirmou o cantor, explicando que não tem preferência de quem o interprete nas telonas ou quem adapte sua vida para a sétima arte."Hoje em dia estão surgindo muitos novos meninos experts, com essas novas plataformas de televisão, a realização cinematográfica democratizou muito. Tem muita gente nova, mais aberta, mais pluralista do ponto de vista das imagens, do que é cinema, do que é registrar cinematograficamente. Muitas pessoas estão capacitadas para fazer um bom filme sobre qualquer um desses artistas mais icônicos", ponderou.
Quando perguntado sobre qual canção ele gostaria que virasse um filme no estilo Eduardo e Mônica e Faroeste Caboclo, o músico limitou-se a responder, simpático: "Eu não sei, menina", enquanto uma assessora sua fez questão de sugerir: "Domingo no Parque", levando Gil a admitir que a música teve um curta experimental e ficcional logo que foi lançada. Vamos ter que procurar.