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    Mostra SP 2019: "Era como se meu corpo estivesse quebrando", revela diretor de Fotógrafo da Guerra sobre filmagens (Entrevista exclusiva)

    Boris B. Bertram acredita que Brasil e Dinamarca são semelhantes no modo de pensar a produção cinematográfica.

    O registro imagético em zonas de guerra foi um dos temas de destaque na programação da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com produções como Corações e Ossos, de Ben Lawrence, e o documentário Fotógrafo da Guerra, do dinamarquês Boris B. Bertram. Este último acompanha a rotina de Jan Grarup, um dos profissionais mais aclamados e influentes deste ramo.

    A ideia do filme é mostrar como Grarup precisa dividir seu tempo entre o trabalho, que envolve longas viagens, além do desgaste físico e emocional de testemunhar conflitos armados, e família. Ao ser surpreendido pela notícia de que a ex-esposa está morrendo de um severo câncer no cérebro, Grarup precisa readequar toda a sua rotina para estar presente na vida dos quatro filhos, que passam a morar com ele durante o tratamento da mãe.

    Assim, o documentário se dispõe a tocar não apenas em feridas muito profundas do fotógrafo, como também o acompanha em perigosas expedições até as zonas de confronto. O AdoroCinema teve a oportunidade de conversar com Bertram em São Paulo sobre Fotógrafo da Guerra e o processo de produção do filme. Confira a conversa abaixo.

    Gostaria que você começasse dizendo por que decidiu fazer este filme. O que em Jan Grarup despertou a vontade de contar sua história?

    Boris B. Bertram: Este é meu terceiro filme sobre resoluções de conflito. O primeiro foi sobre o Conselho de Segurança das Nações Unidas, o segundo foi sobre o envolvimento de Estados Unidos, Reino Unido e Dinamarca na Guerra do Iraque, e o terceiro é Fotógrafo da Guerra. Diferente dos outros, desta vez a ideia era seguir um personagem com boots on the ground (isto é, que vai pessoalmente até a região de conflito). Essa foi parte da minha inspiração. Eu acompanho o trabalho de Jan há muitos anos, e ele faz dois tipos de registro: imagens poéticas envolvendo questões sociais despertadas pelos conflitos; e documental de crimes de guerra. Em 30 anos, já esteve em todos os lugares em guerra, passando por Ruanda, Somália, Chechênia, Oriente Médio etc. Ele pula de uma guerra para a outra, e ainda assim precisa descobrir como ser um bom pai. O filme é tanto o retrato de um fotógrafo quanto um drama familiar, que são duas dinâmicas interessantes e contrastantes.

    Os filmes sobre personagens de guerra geralmente têm um teor mais depressivo, com os retratados sendo pessoas traumatizadas. Jan Grarup foge um pouco disso e tenta parecer feliz e saudável, na medida do possível. Essa abordagem foi consciente?

    Boris B. Bertram: Quando Jan fala sobre si, ele diz que é uma alma machucada. Ele tem estresse pós-traumático e já usou drogas. Então, eu fiz uma escolha consciente de produzir um filme contado em cenas, e não em entrevistas com ele. Cabe ao espectador interpretá-lo, dizer se ele é um bom pai ou não. Acho que as pessoas conseguem perceber que ele é assombrado pelo trabalho. Ele viu muita coisa, tirou muitas fotos, e isso volta para ele no cheiro, nas interações sociais. Ele não está totalmente equilibrado, mas as crianças o ajudam a se tornar uma pessoa normal. As cenas com a família são as mais honestas, porque é um lado diferente em relação ao que as pessoas leem no jornal.

    Em algumas cenas, as crianças parecem pouco confortáveis diante da câmera, principalmente o filho mais novo. Como foi a experiência de passar tanto tempo com a família? Você praticamente se torna um membro dela.

    Boris B. Bertram: Havia três regras desde o início. Primeiro, Jan não queria nenhum tipo de interferência entre ele e a câmera, quando ele estivesse tirando fotos. Segundo, ele podia dizer não para as filmagens quando estávamos em zonas de guerra, por questões de segurança. E a terceira é que as crianças tinham que concordar com todas as cenas no filme. Tínhamos um contrato muito firme, e isso permitiu que nos tornássemos íntimos, porque eles sabiam que teriam a palavra final na montagem. Essa é uma decisão muito grande para se tomar como artista.

    De dar o controle criativo a outra pessoa.

    Boris B. Bertram: Sim, mas achei que este era o único modo de ser feito. E estou muito feliz com o resultado e o que foi mudado, acho que se tornou um filme melhor, foi um bom equilíbrio.

    Guia da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

    Você foi às zonas de guerra com Jan. Que tipo de cuidados precisou tomar para que as filmagens fossem seguras?

    Boris B. Bertram: Primeiro de tudo, tivemos um treinamento básico de como se portar em uma zona de guerra. Jan é muito experiente, já faz isso há 30 anos. Um ex-soldado nos dizia onde ir, dirigia para nós e salvou a nossa vida algumas vezes, com certeza. Eu não planejava ir até lá, mas foi uma necessidade. Quando voltei, passei muito mal, vomitei várias vezes, era como se meu corpo estivesse quebrando. Jan disse que eu estava reagindo “de um jeito bom”. E realmente reagi, porque tirei isso de dentro de mim, de alguma forma. Eu não estou traumatizado, mas é claro que, quando você vê a guerra, isso te afeta para o resto da vida.

    No Brasil, não recebemos muitos filmes dinamarqueses nos cinemas, mas, de maneira geral, é possível notar que existe um público para eles, como aconteceu recentemente com Rainha de Copas, o filme selecionado para representar a Dinamarca no Oscar. Como você acha que podemos aproximar essa relação entre os países?

    Boris B. Bertram: Fico feliz que você tenha dito que nossos filmes têm espaço nos cinemas brasileiros. Eu acho que temos uma tradição, na Dinamarca, de focar em histórias humanistas e conflitos psicológicos, com pessoas complexas, que às vezes dizem uma coisa e fazem outra. Acho que é uma marca nossa e somos muito honestos em retratar esses conflitos humanos. Nós também gostamos de fazer filmes em que não entregamos tudo ao público. Temos que desafiar os espectadores, olhar para eles como pessoas realmente inteligentes, não podemos subestimá-los. E é exatamente isso que tento fazer nos meus filmes. É interessante porque há uma dinâmica interessante entre brasileiros e dinamarqueses, uma semelhança na maneira de ver a vida. Inclusive, lá somos chamados de “brasileiros do norte”.

    É mesmo?

    Boris B. Bertram: Como vocês acham que somos? Frios?

    Acho que esse é o estereótipo, a ideia geral que as pessoas têm.

    Boris B. Bertram: Quando estou no Brasil, noto que as pessoas são muito mente aberta, muito expressivas, e eu adoro isso. Temos um pouco disso na Dinamarca também, gostamos de nos expressar, de dançar. Talvez sejamos um pouco mais quietos, mas, quando nos abrem, somos muito participativos nesses assuntos.

    Você acha que Rainha de Copas é um bom representante do cinema da Dinamarca? Foi uma boa escolha para o Oscar?

    Eu conheço a diretora (May el-Toukhy), e o que eu adoro é como ela usa a natureza para apresentar elementos de duplo sentido. O filme é excelente, tem uma audiência altíssima na Dinamarca, está em cartaz há 9 meses. Agora, nosso cinema está com o foco voltado para histórias femininas e diretoras mulheres, e elas estão fazendo coisas incríveis. Acho importante pensarmos sobre a protagonista, que tipo de mulher é essa? Por que temos que olhar para ela? Por que ela está fazendo o que ela faz? Por que Jan Grarup, no meu filme, faz o que ele faz? São análises interessantes para se fazer da humanidade no mundo moderno.

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