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    Mostra SP 2019: "Bolsonaro é bicho solto com um partido em colapso", Maria Ribeiro e Loiro Cunha falam sobre documentário Outubro (Entrevista)

    Diretores se uniram para filmar um documentário improvisado nos dias que antecederam as eleições presidenciais.

    A uma semana do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, quando a polarização política no Brasil atingia seu ápice, os diretores Maria Ribeiro e Loiro Cunha decidiram ir às ruas para registrar os ânimos da população. Mais do que um documento, Outubro é o fruto intimista de um processo criativo iniciado por Ribeiro e Cunha, cujo principal propósito era exorcizar a dor e angústia geradas em um momento conturbado. Além do embate sociopolítico, Ribeiro lidava também com o fim de seu casamento, o que torna o filme uma espécie de diário onde ela expõe todas as suas fragilidades.

    Sem roteiro ou qualquer tipo de planejamento logístico prévio, os realizadores foram guiados principalmente pelo desejo de estar junto ao povo e aos amigos, mesmo com a esperança de uma reviravolta se esvaindo mais a cada instante. O documentário traz entrevistas com alguns protagonistas dessas tensões, como Manuela D'Ávila, candidata à vice-presidência na chapa derrotada, e Maria Rita Kehl, psicanalista. Nos momentos iniciais, Outubro mostra Ribeiro em um protesto silencioso na Av. Paulista, quando se vestiu de noiva e adentrou uma manifestação a favor de Jair Bolsonaro.

    O AdoroCinema teve a oportunidade de assistir ao filme, na 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e conversar pessoalmente com Maria Ribeiro e Loiro Cunha sobre este projeto. Confira o bate-papo abaixo!

    Guia da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

    Como surgiu a parceria de vocês e a ideia de fazer um filme de forma tão improvisada?

    Maria Ribeiro: Eu estava super angustiada e vi no Instagram um vídeo incrível do Loiro, de um ato do Caetano Veloso no Largo da Batata. Já acompanhava o trabalho do Loiro, mas a gente não se conhecia pessoalmente. Liguei para ele e me apresentei, disse que estava desesperada e precisava fazer um filme sobre a eleição, mas que eu não tinha ideia do que queria fazer, seria totalmente sem roteiro, um diário do tipo “sete dias antes do fim do mundo”.

    Loiro Cunha: Eu estava de repouso, porque tinha quebrado o pé. O mundo pegando fogo e eu só andando pela sala de casa. Quando a Maria me ligou perguntando se eu queria fazer o filme, eu não sabia se seria possível, tanto que teve um dia que precisamos parar de gravar porque precisei ficar de repouso. Então, realmente foi tudo urgente, a gente fez esse filme porque não tinha o que fazer, era uma forma de a gente se salvar, salvar a nossa semana. A gente não ia mudar nada no resultado das eleições, mas pelo menos mudamos a nossa semana.

    Maria Ribeiro: Sim, pelo menos tivemos alguma ilusão de utilidade, mas a gente foi se conhecendo no decorrer, foi tudo bem na maluquice.

    Em certo momento do filme, uma personagem diz: “eu não sou louca, eu meto a louca, porque senão quem infarta sou eu”. O que esta função diário cinematográfico trouxe de retorno ao final do processo? Qual foi o sentimento de ter passado por tudo isso?

    Maria Ribeiro: O sentimento final é de que dentro do horror existe uma coisa linda, que são os encontros. Vimos coisas maravilhosas em meio a um horror absoluto. Teve meu encontro com o Loiro, a cena com o Gilberto Gil, o ViraVoto. As pessoas que estavam juntas estavam realmente unidas, e isso foi muito emocionante, apesar de ser um filme com uma atmosfera trágica.

    Maria, você faz uma associação entre casamento e eleição, diz que são semelhantes no sentido de torcer pela virada de algo que já acabou e não tem mais volta. Você diz também que casamento e democracia são instituições que exigem um engajamento romântico. De onde partiu essa analogia?

    Maria Ribeiro: Ao contrário do [escritor e jornalista] Xico Sá, que diz na entrevista dele que acreditava em uma virada, eu tinha certeza que o Bolsonaro ia ganhar, mas eu não ia ficar em casa vendo série, eu fui para a rua, para o ViraVoto. No casamento, às vezes você percebe que acabou o amor, acabou o encontro. Nos tornamos pessoas completamente diferentes, mas vai que a gente faz uma terapia de casal e fica bem, vai que a gente faz uma viagem e depois se muda para o Uruguai e fica bem. Existe um romantismo em continuar tentando até o fim. Vai que o Haddad vira, vai que eu me reapaixono pelo meu marido. Essa questão da democracia e casamento que eu falo é porque o continuísmo é nocivo, eu sou totalmente contra. Acho a reeleição péssima, não tem como segurar a onda de ficar oito anos no poder sem sua cabeça virar, e o casamento joga contra o amor. Como você faz para manter os ideais tendo que entrar num congresso e brigar contra o sistema? Como você faz para manter o amor tendo que fazer mercado, pagar contas e gerenciar 200 problemas? E é isso, não é? A vida ideal e a vida real.

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    Gostaria que vocês falassem do aspecto metalinguístico em Outubro, porque na cena que o Ravel Andrade canta, por exemplo, a Maria entra falando “aqui na montagem, ouvindo ele cantar, eu me emociono”. Não é linear, você adiciona pequenas notas sobre o fazer do cinema enquanto faz cinema.

    Maria Ribeiro: Na montagem, de fato eu me emocionava muito e achava que cenas como a do Ravel conversavam com o tema do filme. Como que um cara que eu mal conhecia me emocionou durante oito meses de montagem? Se existe em mim alguma linguagem como artista, é o fato de procurar escrever como eu falo. E eu faço cinema da mesma forma, não gosto da distinção, quero ser o mais franca possível, trazer o processo e as entranhas para o espectador, porque o filme vai sendo refeito à medida que avança.

    Você fala inclusive da pausa nas gravações, quando você sai de São Paulo para ir ao Rio de Janeiro. Você diz: “eu ia filmar uma cena um mês depois e fingir que tinha sido gravada na semana da eleição”, mas aí você conta a verdade para o espectador, o que rompe com seu próprio processo, de certa forma.

    Maria Ribeiro: Exatamente. A gente ia deixar tudo preto, sem nada, mas depois eu mudei de ideia. É um documentário, não dá para mentir, a onda do documentário é ser na ordem, ser verdadeiro, ser cru. Decidi colocar a cena e assumir que menti, e pedir desculpas por ter mentido. Isso é um charme, de certa forma, porque é claro que documentário nenhum existe no sentido de ser real, é a minha leitura e do Loiro. Quando eu digo que fingi, eu também estou brincando.

    Loiro Cunha: É um truque, o Cinema é um truque.

    Maria, você foi chamada de noiva cadáver e caçadora de holofotes quando entrou na manifestação pró-Bolsonaro, tudo isso em meio a um processo que já era difícil. Como foi lidar com esse misto de emoções e repercussões?

    Loiro Cunha: Eu quero dizer uma coisa. O ato da Maria de ir para a Av. Paulista vestida de noiva me deu muito medo. Eu acho que foi de uma coragem absurda.

    Maria Ribeiro: Beirando a irresponsabilidade.

    Loiro Cunha: Quase rolou agressão física. É muito louco, porque as mulheres tiveram uma reação muito pior que a dos homens. As mulheres lá estavam pedindo o fim dos direitos humanos, queriam bater na Maria, com sangue nos olhos tão forte que não percebiam que elas só estão exercendo essa liberdade por conta do feminismo e dessa reconstrução de mundo, por conta de mulheres que dão a cara a tapa.

    Maria Ribeiro: É porque quando você rompe com algo… a noiva é para igreja, né? É para o conservadorismo. A noiva não é para lutar, ela é feita para manter o patriarcado, a única noiva que luta é a de Kill Bill. Então, eles ficaram assim: “gente, o que é isso?”. Fui muito xingada, ninguém entendeu nada, disseram que eu queria aparecer. Eu não falei absolutamente nada na manifestação, mas as pessoas sabem meu posicionamento, então pensaram: “se ela está ali, muda, de noiva, do nosso lado é que ela não está”.

    Loiro Cunha: Entrar dentro da manifestação do Bolsonaro foi a pior experiência em sociedade que eu já tive. Não tinha nenhuma frase de construção, era sempre: “vamos acabar com isso ou aquilo, Deus, pátria e família”. Eu nunca vi uma manifestação com pessoas tão separadas, não tinha união. É uma loucura. O Marcelo Freixo sempre fala: a luta pela democracia é mais alegre, mais sadia, as pessoas formam uma unidade.

    Um ano se passou desde a eleição, qual a leitura que vocês fazem, hoje, daquele momento no passado e do atual?

    Maria Ribeiro: Eu não sei se conseguiria fazer alguma dramaturgia com o que está acontecendo agora. Antes, tinha o espanto, e o espanto vira arte. Agora, eu estou paralisada. Talvez o Bolsonaro seja o presidente mais importante da história do Brasil, no mau sentido, porque vamos estar associados a um cara que não sabe falar, que é contra cadeirinha no assento de trás do carro, a favor de arma, e que chama a mulher do Emmanuel Macron de feia e velha. Quando Marcelo Rubens Paiva disse na entrevista que os livros dele iam para fogueira, eu pensei: “ele está exagerando”. Eu não fazia ideia, está muito pior do que imaginei.

    Uma das entrevistadas de Outubro diz que, de certa forma, o momento atual é pior que a ditadura, porque na ditadura havia método, mas do Bolsonaro não se sabe o que esperar.

    Loiro Cunha: Ela fala também que a sociedade não está só autoritária, está psicopática. O Bolsonaro não tem um método, um plano, ele não tem nada. Ele é bicho solto com um partido em colapso. O Brasil é um narcoestado miliciano, é loucura onde chegamos. O país está em queda livre e precisamos construir um fundo do poço. Todo dia é uma coisa nova, estamos nos acostumando à barbárie.

    O documentário Outubro terá três exibições na programação da Mostra, clique aqui para mais informações.

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