Um crime bárbaro cometido há 17 anos e que ainda choca o Brasil. Como todo caso de assassinato premeditado que surge de fontes inesperadas, o nome dos Richthofen permanece com um peso desagradável até hoje, sendo mais um exemplo de como a mente humana é capaz de planejar eventos que trarão consequências extremas.
Devido a sua natureza marcante, certos crimes e assassinos servem de inspiração para obras literárias e cinematográficas com certa frequência. A busca pela compreensão da mente de certas pessoas que são capazes de realizar atrocidades sem hesitação já foi amplamente abordada em inúmeros livros sobre crimes, assim como em séries de TV e filmes: Mindhunter, Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy, Zodíaco, Monster e Seven são alguns exemplos. Não há como negar: a curiosidade para este assunto é aguçada.
Por mais que existam inúmeros casos conhecidos no Brasil, o leque de obras ficcionais no país que contam esse tipo de história não é extenso - mas agora o gênero ganhará mais um título. O caso Von Richthofen se transformará em dois filmes com lançamento simultâneo em 2020, contando com não só uma, mas duas visões sobre a mesma história: uma de Suzane, filha de Manfred e Marisa, e outra de Daniel Cravinhos, então namorado da mandante do assassinato. Intitulado A Menina Que Matou Os Pais, o longa é protagonizado por Carla Diaz e dirigido por Maurício Eça.
O AdoroCinema visitou o set em um dia das filmagens e acompanhou cenas de Carla ao lado de Leonardo Bittencourt (intérprete de Daniel). O ambiente? Um tribunal, cenário que servirá como base narrativa para ambos os filmes. Além de acompanharmos a equipe e a dinâmica no set, entrevistamos a dupla de atores, assim como Eça e um dos produtores do projeto, Marcelo Braga.
"O que você está vendo hoje é 2006. A gente retrata, através do tribunal deste ano, a história e a vida dessas famílias. Os três anos e meio de relação entre Suzane e Daniel é o que está no filme através dos flashbacks", explica Braga. A timeline de A Menina Que Matou Os Pais se passará entre 1999, ano que marca o início do relacionamento do casal, até o julgamento que fez com que milhares de pessoas acompanhassem pela televisão, jornais ou até mesmo pessoalmente.
O projeto do longa partiu de Maurício Eça devido ao interesse neste tipo de assunto. "Procurei o Marcelo Braga, começamos a desenvolvê-lo e, então, procuramos Illana Casoy e Rafael Montes para desenvolver o roteiro. Fomos atrás do processo e descobrimos que nele havia essa coisa do julgamento, que cada um contou uma versão diferente. E aí foi a sacada de ter no filme as duas versões. Só depois, com a entrada da produtora Galeria, que o Gabriel Gurman (também produtor) deu a ideia de dois filmes serem feitos", conta Eça. A obra literária de Casoy, criminóloga e profunda conhecedora do caso Richthofen, aguçou o interesse do diretor em entender os motivos que levam as pessoas a cometer este tipo de crime.
AMOR LETAL
Tanto Maurício quanto Marcelo sabiam que o público poderia não reagir tão bem às notícias sobre o início do projeto, mas ambos afirmam que o filme não tem a intenção de julgar ou endeusar ninguém, além de que este gênero é muito consumido no streaming e no cinema. "Hoje as pessoas estão entendendo um pouco mais que isso é cinema. Já divulgamos que nenhum dos envolvidos está ganhando dinheiro com a produção. O filme todo é baseado num processo penal, então não estamos contando algo que já não foi divulgado. Vivemos um momento em nosso país que as pessoas estão se expressando de forma diferente do que antes. O que está sendo interessante é que tem muita gente defendendo o filme, a ideia de se fazer esse ou outros longas sobre casos reais, assim como isso é feito lá fora", defende Eça. "Sempre houve um respeito muito grande desde quando concebemos o projeto, que já faz alguns anos. Como produtor, entendo que o respeito é o principal norte deste projeto e o cuidado também", afirma Braga.
"Eles são réus confessos. O filme não tem a pretensão nem de julgar, nem defendê-los. Eles estão pagando pelo crime que fizeram. Estamos apenas contando essa história que chamamos de 'amor letal'. Não sei se é um thriller, um suspense, mas sei que também é uma história de amor", explica o diretor, antes de comentar sobre o desafio que é dirigir dois longas-metragens ao mesmo tempo. "Fazer um filme já é difícil, dois então... É algo que temos de nos preocupar nos mínimos detalhes o tempo inteiro. Como são duas versões, na versão da Suzane ela conta o Daniel de um jeito - e vice-versa. Temos que organizar toda essa orquestra que é fazer cinema, mas neste caso são muitos detalhes e coisas não ditas que estão em apenas uma versão", conta Eça.
Sobre a possível recepção do público em aceitar ou não assistir a um filme seguido do outro, o diretor reflete: "Talvez a ordem dos fatores pode ser diferente para um do que para outro. Mas vai funcionar muito assistir aos dois filmes. Eles funcionarão bem individualmente, mas ainda melhor juntos. Ver a visão dela e depois a dele, você vai ficar 'em quem vou acreditar?'. São versões diferentes e complementares ao mesmo tempo. E não serão filmes muito longos, eles terão aproximadamente 1h20."
SUZANE E DANIEL
Da mesma forma que A Menina Que Matou Os Pais é um desafio em termos cinematográficos, é também um desafio para as carreiras de Carla Diaz e Leonardo Bittencourt. Seus personagens, além de pessoas reais, são indivíduos que cometeram um ato brutal e nunca serão perdoados, apesar de estarem cumprindo suas penas em cárcere. Mas ambos encaram seus papéis de forma estritamente profissional: sem contato com Suzane ou Daniel, apegando-se apenas à dramaturgia.
"Nunca tivemos contato com eles. Primeiro porque, para nós, não é interessante. Estamos contando o antes, e muito tempo se passou, não seria útil ao projeto. Tudo é feito com base nos autos, então encaramos a dramaturgia de acordo com o que está escrito no roteiro. Não precisamos de mais informação e não foi nem uma questão de recusa. Nunca existiu o interesse ou a possibilidade", afirma Leonardo.
Justamente por encararem este trabalho com tanta dedicação, a rotina de filmagens para ambos os filmes está sendo intensa - especialmente para Diaz: "Ultimamente tenho falado que quando não estou gravando, estou dormindo. Como atriz, gosto de me entregar e viver intensamente os processos de cada personagem. Essa não seria diferente, é mais um desafio para mim como artista. Cheguei a estados emocionais que ainda não tinha vivido. Estou me conhecendo melhor e criando algo diferente do que já havia feito, principalmente por estar fazendo uma personagem que é real, acusada e condenada pelo bárbaro crime que levou à morte de seus pais."
Leonardo, por sua vez, contou que teve de aprender a atividade de aeromodelismo (área na qual Daniel já trabalhou) para entrar mais no personagem: "Tivemos um processo de preparação bem complexo. Esse é um assunto pesado, com repercussão nacional que é uma responsabilidade muito grande, então tentamos manter o clima mais ameno possível entre nós para poder conduzir da forma mais sóbria possível. Além de contar essa história com o máximo de detalhes, eu tive a preparação para aeromodelismo, que o Daniel era campeão, e eu aprendi a pilotar."
Quanto à reação do público, o elenco também comentou que encaram como dentro da normalidade a aprovação ou reprovação, contanto que exista respeito. "Encarei tudo forma bem tranquila pois já imaginava como seria. Temos que respeitar a opinião do próximo mesmo não concordando com ela, e críticas vão existir, assim como elogios. Só que nenhum dos dois pode nos tirar do eixo, fazendo com que percamos o nosso foco. Se queremos viver numa democracia assim tem de ser, respeito ao próximo em primeiro lugar", afirma Diaz, que também refletiu sobre o crescimento do consumo de obras da mesma temática: "A auto-reflexão sobre impulsos violentos leva as pessoas a discutirem e procurarem mais sobre esses temas, seja em filmes, séries, novelas, peças ou games".
"Não estamos aqui para julgar alguém inocente ou culpado; eles já cumpriram o crime judicialmente. Isso já livra muito de acharem que estamos defendendo. Não se trata disso. E também não há nenhum dinheiro de verba pública, o que também exclui qualquer boato que surja sobre investimento, enfim, toda essa questão que a gente sabe que está complicada. Quando se tira esses dois argumentos, as pessoas já ficam: 'Opa, então vamos ao que interessa, o que é essa história?'. E é isso o que a gente quer contar da maneira mais responsável possível, com todo o respeito, pois sabemos bem da gravidade de tudo o que aconteceu. Espero que o público consiga separar, ainda mais com os dois filmes que mostram visões diferentes", explica Bittencourt.