Após uma carreira internacional que inclui passagem por dezenas de festivais de cinema, Sócrates, primeiro longa-metragem do diretor Alex Moratto, chega ao circuito nacional. Antes disso, acumulou diversos prêmios para o currículo, incluindo um Independent Spirit Award.
Protagonizado por Christian Malheiros, que também faz sua estreia como ator de cinema, o filme acompanha as dificuldades financeiras e psicológicas do personagem-título após a morte de sua mãe. Diante da miséria e do preconceito por ser homossexual, Sócrates passa por um duro processo de amadurecimento em que seus valores e ideais são revisados.
O AdoroCinema teve a oportunidade de conversar com Alex Moratto e Christian Malheiros sobre Sócrates. Confira abaixo.
Alex, você tem seis créditos como diretor de curtas, um sétimo a caminho e agora debuta à frente de um longa-metragem, como se deu essa transição e quais foram algumas das barreiras que você precisou superar, em termos de logística de produção, para contar a história do Sócrates?
Alex Moratto: É interessante porque percebi que a preparação para fazer um longa é semelhante a de um curta, com a diferença de que com o longa você fica várias semanas gravando e com o curta você fica poucos dias. Foi interessante aplicar minha experiência com curtas em um longa-metragem. Para mim, a maior barreira foi a preparação para ficar no set por tanto tempo. Fora isso, os processos foram bem semelhantes.
Alguns textos sobre Sócrates, principalmente internacionais, apontam influências do Cinema Novo no filme, principalmente por conta do recorte social, da característica documental e da câmera na mão. Você pode falar um pouco das suas referências para construir esse longa?
Alex Moratto: Eu diria que todos os filmes a que eu assisti recentemente, na época da pré e da produção de Sócrates, eram câmera na mão, trabalhando com atores iniciantes ou até não atores, e eles me ajudaram muito a construir essa linguagem. Eu trabalhei muito próximo com o diretor de fotografia, João Gabriel de Queiroz, que é um grande talento. A gente não queria uma linguagem de documentário. Então, a nossa questão sempre foi: “Como a gente pode ultrapassar um filme que tem esse quê de documentário, mas, ao mesmo tempo, tem essa sensibilidade realista, sendo um filme dirigido?”. A gente posiciona a câmera onde a gente tem que colocar para contar a história.
O que você acha das semelhanças que têm sido apontadas entre Sócrates e Moonlight?
Alex Moratto: Eu assisti a Moonlight depois de fechar Sócrates, e foi muito interessante assistir ao filme sabendo que não foi uma influência. Foi uma dessas coisas muito interessantes que acontecem muito no audiovisual, de projetos com temas semelhantes aparecem ao mesmo tempo. E eu acho que isso tem a ver com o mundo, com a cultura, com o momento e as histórias que estão tocando as pessoas. Então, eu achei muito interessante isso acontecer, mesmo não tendo nenhuma ligação ou influência desse filme.
Como foi para você ter o seu filme entre os doze selecionados para concorrer a uma vaga de representante do Brasil no Oscar 2020? Gostaria que você avaliasse esta safra do cinema brasileiro e dizer o que você achou da escolha de A Vida Invisível.
Alex Moratto: Eu ainda não assisti ao filme, estou bem curioso. Para mim, foi uma grande honra estar nessa lista de finalistas com tantos filmes e cineastas que eu respeito. Quando eu vi a lista dos artistas e profissionais do comitê de seleção, eu achei que foi uma grande honra deles aplaudirem e contemplarem esse filme, para mim foi muito maravilhoso poder estar nessa lista e ter o nosso filme contemplado.
E, falando em grandes honras, você também foi vencedor do Independent Spirit Awards na categoria diretor revelação (Someone to Watch). Como foi essa experiência?
Alex Moratto: Mudou completamente tudo na minha vida, porque é o maior prêmio para filme independente dos Estados Unidos e, provavelmente, do mundo. Eu não imaginava que eu ia estar nessa lista e, muito menos, ganhar. Foi algo muito especial, muito incrível, mais ainda porque o meu mentor, o cineasta norte-americano Ramin Bahrani, ganhou esse mesmo prêmio com o segundo longa dele, na mesma época em que eu o conheci. Eu tinha 17 anos quando trabalhei como estagiário dele. Depois eu virei assistente de direção no terceiro longa dele. Ele também foi um produtor de Sócrates, sempre foi o meu mentor desde jovem. Então, ganhar o mesmo prêmio que o meu mentor ganhou foi uma coisa muito especial e muito grande para mim.
Sócrates teve uma trajetória muito marcante em festivais, passando por dezenas de eventos de cinema mundo afora. Qual a sua percepção, como cineasta, do contingenciamento orçamentário pelo qual a Ancine tem passado e a consequente rescisão de apoio a filmes brasileiros em festivais internacionais?
Alex Moratto: A gente tem que sempre manter e, além disso, acrescentar oportunidades para apoiar filmes de cinema nacional e no mundo inteiro, então é sempre importante a gente ter e contar com apoio onde a gente puder.
Para finalizar, gostaria que você falasse do envolvimento do Fernando Meirelles no Sócrates, e também dos trabalhos dos alunos do Instituto Querô da Baixada Santista.
Alex Moratto: Eu vou começar com o Instituto Querô. Na verdade, eu fui voluntário do Instituto quando eu tinha 19 anos, em um dos períodos que eu estava aqui no Brasil. Meu pai é americano e a minha mãe brasileira, mas fui criado nos Estados Unidos. Em um desses períodos que eu passava aqui no Brasil, eu me voluntariei nesse Instituto, e a gente teve um sonho de que um dia faríamos um projeto juntos. Eu voltei para os EUA, concluí meus estudos e, anos depois, eu voltei para o Brasil, escrevi o roteiro, apresentei para eles e entramos direto nessa produção. Eu fiz um pitching para eles em fevereiro, e em março já começamos a pré-produção. Foi muito incrível poder me reconectar com meus amigos e poder trabalhar com um Instituto que realmente mudou o jeito que eu vejo o mundo, as histórias que eu gosto de contar, os cineastas que me despertaram várias questões sociais e humanas. E, sobre o Fernando Meirelles, no período que eu estava fazendo seis meses de Ensino Médio, aqui no Brasil, por coincidência, eu estava estudando na mesma escola que a filha dele. Um dia, quando Cidade de Deus lançou, eu estava com 14 anos e ele foi na escola falar sobre o projeto e conversar com os alunos. Eu lembro que, depois da apresentação, eu fui falar com ele e disse: “Eu sou Alex Moratto e eu vou ser um cineasta”. Ele riu, porque achou fofo um menino de 14 anos vindo falar isso para ele. Anos depois, eu apresentei Sócrates para ele através da O2 Filmes e ele entrou como produtor executivo. Foi uma grande emoção ele entrar nesse projeto e dar tanto apoio para nós.
E ele lembrou dessa cena de quando você tinha 14 anos?
Alex Moratto: Eu contei o que aconteceu, mas ele não lembrou disso especificamente. Ele lembra de ter apresentado o filme. De qualquer maneira, foi muito lindo poder contar essa história para ele.
Christian, este é o seu primeiro trabalho no cinema e você já ganhou dois prêmios de melhor ator em dois festivais, além de ter sido indicado a um terceiro, que é o Independent Spirit Awards. Como foi essa experiência das premiações?
Christian Malheiros: Quando a gente está fazendo um trabalho, eu não coloco expectativa nenhuma, porque a sua expectativa vira uma frustração, e eu acho que isso é um atraso. Eu apenas fiz o filme. Não pensei, não achei, não estava almejando que fosse. Eu nem sabia que o Spirit existia, na realidade. Então, de uma certa forma, a gente quer fazer um bom trabalho porque a gente acha que vai tocar as pessoas. Depois que o filme foi lançado, teve uma carreira linda de festivais, você vê que teve um reconhecimento, que as pessoas gostam do seu trabalho e que elas se identificam. Isso é gratificante. Então, foi uma experiência muito legal, mas eu não fui lá com esse espírito de competição, eu fui lá para celebrar porque eu acho que tem que ser celebrado, principalmente o nosso filme, que tem uma peculiaridade, que é o fato de ser um filme de baixo orçamento, muito baixo mesmo, e ser feito por jovens.
Você faz parte de dois projetos, atualmente, de muito sucesso, que é o Sócrates, no cinema, e Sintonia, na Netflix, duas obras que retratam o que é crescer na periferia, apesar de partirem de perspectivas diferentes. Eu gostaria que você traçasse um paralelo entre o Nando e o Sócrates.
Christian Malheiros: Eu até me coloco no meio, porque acho que são nós três. Porque eu, Sócrates e Nando somos três jovens negros de periferia, o que nos separa é o caminho que cada um escolhe. Eu fugi pela arte, o Nando pelas drogas e o Sócrates está até hoje tentando achar um caminho, mas, de certa forma, o caminho que ele já escolheu foi não cair nesses lugares do submundo, digamos assim, dessa marginalidade. Eu acho que, no contexto geral, essas duas obras falam também sobre questões que rodeiam o jovem de periferia, num lugar onde ainda está acontecendo a formação de caráter, onde todo mundo está ainda entendendo o que é ser adulto. Então, eles falam muito sobre isso e também sobre tirar esse estereótipo de que na periferia só existe bandido. Não, é um lugar comum, com pessoas normais, que também choram, também têm todas as frustrações e todas as alegrias de qualquer pessoa comum.
No que diz respeito à construção de personagens, quais são as particularidades de criar um personagem para o Cinema, que tem uma vida limitada, de certa forma, e um outro como o Nando, que pode aparecer em muitas temporadas e se desenvolver por um tempo?
Christian Malheiros: Eu até falo que o Cinema é uma coisa que eu gosto muito, porque é muito artesanal. Você tem roteiro fechado, você sabe como funciona, você tem alguns diretores que estão pensando aquilo tudo. Então, essa forma de criação é um pouco mais bem cuidada e não foge muito do controle. Não tem muito choque de ideias, apenas entre diretor e ator, às vezes, mas logo se entra em um consenso. Enquanto criar para TV, para Netflix, por mais que seja o mesmo processo, tem que chegar naquele lugar da realidade, da sensibilidade, nos dois trabalhos. O que muda é essa questão de relação, porque, em uma série, um projeto muito maior, que tem vários diretores, muita gente está pensando aquela mesma obra. E, de uma certa forma, o ator vem como um filtro, porque ele pega todas as ideias que vem desde a produção, direção, arte, cenário, da locação escolhida, e filtra todas essas informações, coloca a sua assinatura e coloca na tela, manda para fora. Então, o nosso filtro em séries, em projetos maiores, tem que ser muito maior porque a gente está, de uma certa forma, representando a ideia de todo mundo ali.
Imagino que o fato desses dois trabalhos serem lançados em épocas bem próximas tenha tido muito impacto na sua vida pessoal, principalmente no que diz respeito à ser reconhecido, receber carinho de fãs, e eu queria saber como tem sido lidar com essas mudanças.
Christian Malheiros: É uma mudança muito brusca, porque as coisas acontecem de uma forma muito rápida. Eu já estava explorando Sintonia, o Sócrates também já teve uma repercussão, e agora também um trabalho está ajudando outro, isso que eu acho um máximo. Tem aquelas questões também, você perde a privacidade, você começa a virar uma referência para as pessoas quando, na real, você é uma pessoa normal que também chora, que também comete erros, que também tem defeitos. Isso assusta um pouco, mas eu enxergo também como uma forma de demonstrar carinho. Eu gosto de pensar assim: “Não, eu consigo ter a minha privacidade, só que em outro lugar, mais restrito”. Esse carinho das pessoas é sinal de que o seu trabalho tocou elas, então eu tento ver tudo isso de uma forma muito positiva, porque, realmente, tudo acontece muito rápido e, se você não tiver cabeça, você fica doido.
Qual a sua percepção acerca do contingenciamento orçamentário da Ancine e a consequente rescisão de apoio financeiro para os filmes brasileiros em festivais internacionais?
Christian Malheiros: Qualquer tipo de corte, em qualquer área, principalmente na arte, que já não tem, é complicado. O cinema brasileiro já provou que a gente sabe sim fazer coisas lindas, que a gente tem capacidade, estofo e histórias para contar, que a gente tem ponto de vista para defender e muitas coisas para transformar. A gente já provou tudo isso, mas eu acho que a gente também precisa lutar para que, de certa forma, a gente consiga continuar a existir, porque hoje estamos vivendo em uma era que o streaming está tomando conta de tudo. Essas redes e empresas têm uma ideologia, e em todo trabalho que você faz dentro dessas empresas você também vai estar falando o que aquela empresa quer falar. O cinema nacional ainda é o único lugar que a gente consegue falar sem ser podado. Você vê filmes sendo censurados depois de feitos, não é? Porque o cinema tem a liberdade de fazer o seu roteiro, de produzir o seu filme, o que você quer falar, sem uma interrupção. Então, eu acho que a nossa luta tem que ser ainda maior porque a gente tem que preservar a nossa independência, esse lugar de fala, que a gente não vai encontrar nessas empresas de streaming. Empresas que são muito boas, tem que vir sim, tem que se criar um mercado no Brasil, ver o Netflix, HBO, o Amazon, todo mundo, mas também tem que preservar o nosso ouro, que é o nosso cinema nacional. Então, eu acho que a nossa luta aumentou agora, o nosso gigante é maior.