Um "drama político realista com elementos de thriller romântico ficcional" é uma das definições possíveis para o filme Legalidade, que estreou na ultima quinta-feira (12) nos cinemas. Mas um detalhe que deve chamar a atenção do público é a incômoda semelhança entre os temas históricos apresentados na tela e o contexto brasileiro recente.
Ambientado em Porto Alegre no ano de 1961, o longa do diretor Zeca Brito narra a trajetória do movimento político-social "Legalidade", que buscava concretizar a posse do presidente João Goulart, o "Jango", em meio a pressões dos setores militares, que clamavam por um impedimento -- Goulart era então vice de Jânio Quadros, que havia renunciado ao cargo. Em meio às turbulências, um triângulo amoroso é formado entre Cecília (Cleo Pires) e os irmãos Luis Carlos (Fernando Alves Pinto) e Tonho (José Henrique Ligabue).
"Na verdade, Legalidade foi um 'contra-golpe', um movimento que impediu que a ditadura que começou em 1964 não acontecesse já em 1961", explica Brito ao AdoroCinema. Impulsionado por discursos transmitidos via rádio por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, o Legalidade foi ganhando fôlego junto à população brasileira, que iniciou um levante contra os interesses do Exército. Vale ressaltar que, três anos depois, um golpe militar de fato tirou Goulart do poder.
Comprometido com a fidelidade aos fatos tanto na estética como no discurso, Legalidade dá bastante destaque à atuação de Leonardo Machado como o jovem e carismático Brizola, idealizador do movimento que batiza o filme. Foi o último trabalho cinematográfico de Machado, que morreu em decorrência de um câncer em setembro de 2018.
"Era um ator muito generoso. É um presente o que ele nos dá em tela -- uma de suas grandes interpretações", diz Brito, sobre o falecido ator gaúcho. "Diferente dos outros personagens, em que testamos vários atores, o Leonardo chegou com o personagem pronto, de terno, com bigode e o cabelo penteado para trás, e disse: 'Eu vim aqui buscar a minha cópia do roteiro'. E ele não viu o filme, morreu antes de ficar pronto."
A produtora Luciana Tomasi interrompe: "Só um detalhezinho para não sair errado: Ele viu o filme sim, antes de morrer. A gente fez uma sessão para ele."
"Mas não com a finalização de som, a trilha, as dublagens que faltavam... Ele não pôde ir na estreia, não pôde sentir o público", justifica Brito.
Outras figuras históricas dão as caras além de Brizola (também interpretado na velhice por Sapiran Brito, pai de Zeca), como os presidentes Jânio e Jango e o líder revolucionário argentino Che Guevara. Mas quem acaba com mais tempo de tela são os personagens fictícios como Luis Carlos, interpretado por Fernando Alves Pinto com inspiração em personalidades reais como o antropólogo Darcy Ribeiro e o guerrilheiro Carlos Araújo, ex-marido de Dilma Rousseff.
"O filme instiga a pessoa a querer saber o que aconteceu. A nossa trajetória é tão rica, tem tanta história legal que a gente não conhece", diz Fernando. "A importância de ver o cinema nacional é a gente se enxergar, ver os erros e acertos e poder crescer a partir daí."
"Nosso ponto de partida foi explicar o que foi realmente o Legalidade. Depois, popularizamos essa história com elementos narrativos de cultura de massa ", completa Brito, justificando a trama romântica que envolve o contexto real. "A gente não queria fazer um documentário histórico. É uma ficção. Os elementos estão lançados no filme para que a pessoa saia do cinema e vá procurar um livro de História".
Mas foi por investir pesado na fidelidade histórica que Legalidade conquistou o mérito de soar politicamente engajado e contemporâneo -- ainda mais com a utilização da palavra "golpe" em vários momentos da narrativa. Ainda que a produção do filme tenha começado há quase uma década, Brito não nega as relações entre os fatos retratados e os acontecimentos recentes da política brasileira.
"A questão de Legalidade ser contemporâneo não é um mérito do filme, mas da realidade", diz o diretor. "O filme é completamente voltado para o passado. Se hoje a realidade flerta com o passado autoritário, antidemocrático, esse é um sintoma de uma doença social que a gente vive, e não do filme."
"É um filme que não é imparcial", ele decreta, "e tem uma visão clara da História. Porque eu não acredito em arte imparcial."