No 29º Cine Ceará - Festival Ibero-Americano de cinema, a noite de 4 de setembro foi muito especial para a produção local. Entre os cinco filmes apresentados, quatro eram cearenses, e o quinto deles, a produção pernambucana Marie, se passa parcialmente no Ceará.
Soldados da Borracha, de Wolney Oliveira, foi o único longa-metragem apresentado no Cine São Luiz. Exibido fora de competição (afinal, o cineasta também desempenha a função de diretor executivo do Cine Ceará), o documentário apresenta a história dos trabalhadores enviados ao norte do país durante a Segunda Guerra Mundial, para produzirem borracha e enviá-la ao exército norte-americano. Após a experiência de trabalho forçado, em condições precárias, os sobreviventes ainda lutam para receber salários e compensações.
Apesar de se construir como um filme-denúncia sobre o descaso do governo com seus trabalhadores, o resultado transparece um tom melancólico, conduzido essencialmente por entrevistas de senhores idosos que torcem por reparação, mas não possuem grande esperança de justiça.
Leia a nossa crítica.
Quatro novos curtas-metragens foram exibidos dentro da mostra competitiva, com destaque para Marie, vencedor do prêmio do júri da crítica no último Festival de Gramado. O comovente filme dirigido por Léo Tabosa narra a jornada de uma mulher transexual (a ótima Wallie Ruy) para enterrar o pai, que jamais aceitou sua identidade de gênero.
O projeto possui uma produção impecável, muito coerente no uso dos cenários, a iluminação e na escolha do elenco. Um poderoso plano-sequência noturno na traseira de um veículo, com um lento zoom coroando a intimidade entre Marie (Wallie Ruy) e Estevão (Rômulo Braga), demonstra o impressionante talento do cineasta. Depois do belo trabalho em Nova Iorque, Tabosa se torna um nome a observar de perto, torcendo pelos próximos filmes, sejam eles curtas ou longas-metragens.
Um adendo: apesar do título oficial Marie, os letreiros na tela indicam, no começo e no final, o título Je Vous Aime, Marie, ou "Eu te amo, Marie". Seria uma referência à jornada de autodescoberta Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard?
Entre os demais curtas-metragens, O Tempo do Olhar e o Olhar no Tempo, de Samuel Brasileiro, se abre de maneira aparentemente convencional, quando a avó do cineasta narra suas lembranças enquanto fotos da época desfilam pela tela.
No entanto, logo se percebe que a mulher das fotos não corresponde à avó, ao passo que a narrativa sonora se descola do referencial imagético. O diretor busca associações cada vez mais poéticas, metafóricas, até o hipnotizante plano final, concluindo o filme da maneira bastante potente.
O drama Marco, dirigido por Sara Benvenuto, apresenta o retorno de uma jovem à cidade natal durante um enterro - o que o coloca em curioso diálogo com Marie. A intenção de trabalhar a sexualidade fluida da personagem, através de longos planos-sequência, se mostra particularmente interessante, além de situar de modo orgânico as situações de opressão às mulheres.
Apesar disso, o filme sofre com problemas de captação e edição de som, que torna alguns diálogos incompreensíveis, além das atuações um grau acima do realismo. A escolha por transformar todos os conflitos em catarses (as explosões da mãe e da filha) poderia ser mais equilibrada, apostando em sugestões ou deduções do espectador.
Oração ao Cadáver Desconhecido, dirigido por Sávio Fernandes, faz uma ousada incursão na ficção científica e no suspense/terror ao apresentar a descoberta de um cadáver anônimo próximo da casa de dois trabalhadores. Eles hesitam sobre a atitude a tomar, enquanto percebem a origem sobrenatural dos fatos.
O filme obtém sucesso na construção do clima, mas enfrenta dificuldades em apresentar uma produção à altura de suas ambições (vide o uso de efeitos especiais na parte final, relacionados ao personagem do filho) ou mesmo em desenvolver personagens: por que o pai decidiria imediatamente ocultar e retalhar o corpo? O final em aberto deixa a impressão de um projeto mais interessado na manipulação de gênero do que no desenvolvimento de uma narrativa.
A última noite da mostra competitiva do Cine Ceará apresenta o longa-metragem Greta, de Armando Praça, estrelado por Marco Nanini e Démick Lopes. Os últimos curtas-metragens apresentados serão Rua Augusta, 1029, de Mirrah Iañez, O Grande Amor de um Lobo, de Adrianderson Barbosa e Kennel Rógis, Ilhas de Calor, de Ulisses Arthur e Pop Ritual, de Mozart Freire.