Depois da temporada de sucesso nos palcos, Lília Cabral apresentou no 29º Cine Ceará - Festival Ibero-Americano de cinema a adaptação cinematográfica de Maria do Caritó, sob direção de João Paulo Jabur.
Lília interpreta a personagem-título, uma mulher de cinquenta anos de idade que nunca teve experiências amorosas, e sonha em encontrar o homem de sua vida. No entanto, ela mora num vilarejo onde é venerada como santa por sua virgindade. Quando uma trupe circense chega à cidade, Maria se convence de que o galã do circo é o príncipe por quem sempre esperou.
Durante o festival, a atriz revelou a alegria de fazer este trabalho nos cinemas, depois de tanta experiência na televisão, e confessou que os filmes de Mazzaropi, vistos durante a infância, serviram de inspiração para a comédia que estreia em 31 de outubro nos cinemas.
O AdoroCinema conversou com Lília sobre o projeto:
Como construir uma mulher que, vivendo nos dias de hoje, jamais teve qualquer tipo de contato amoroso aos cinquenta anos de idade?
Lília Cabral: Eu nunca penso de fora para dentro, prefiro pensar a personagem de dentro para fora. Como o texto do Newton [Moreno, dramaturgo] era uma bela poesia no teatro, o fato de falar aquelas palavras, dentro de uma brincadeira comovente, já desenhava a vida interna da Maria. Ela possui várias facetas, não é uma personagem chapada, e todas essas nuances vêm do texto. Quando você tem um texto bom, acaba se comovendo de uma forma que nem precisa procurar uma memória afetiva. Isso vem naturalmente. Quando o texto é ruim, aí fica difícil chorar, se emocionar. Mas o texto do Newton me ajudou muito a olhar no meu interior e tornar a Caritó visível para o público.
Personagens sertanejas como Maria são retratadas normalmente com sotaque exagerado e uma composição maliciosa. Mas você traz uma composição contida.
Lília Cabral: Eu não gosto de humor exagerado, até porque não tinha motivos para o exagero neste projeto. Essa não é uma história para as pessoas gargalharem, é apenas a história de uma personagem que, por acaso, passa por alguns momentos bastante divertidos. Mas outros momentos são tristes, solitários, melancólicos. Eu jamais faria desta personagem uma mulher totalmente desestabilizada só para ganhar uma risada a mais – até porque se eu exagerar, eu não ganho uma risada, mas perco algumas.
Eu não posso ter um olhar apenas para aquela cena, preciso pensar na personagem como um conjunto. Você não faz uma novela pensando apenas no seu personagem, é preciso refletir sobre a história inteira. Do mesmo modo, não posso pensar apenas naquela cena específica, tenho que ver como ela se encaixaria no percurso. Nem me passa pela cabeça a obrigação de ser engraçada. Não vou sacrificar a personagem por isso. Quero que o público vá ao cinema pelo prazer de rir e chorar, pela experiência como um todo. Quero que o espectador se lembre do filme no final, que ache o texto bonito, se sinta libertado de se encontrar ali.
Você interpreta uma personagem que interpreta outros personagens: Maria se converte em santa, em palhaço. Como foi este processo?
Lília Cabral: Maria se vê nesses personagens. Ela pode até ensaiar na casa dela como vai ser o pout-pourri, mas ela se enxerga assim. Quando ela se apresenta, o começo é bem tímido, e depois ela cresce no papel, porque acredita em sua capacidade de ser atriz. Ela nem sabe se quer essa carreira, mas sabe que seria capaz de ter estes movimentos. Nós somos assim também: às vezes estamos presos a uma rotina, no entanto, quando recebemos um desafio, descobrimos que somos capazes de fazer também, e nos surpreendemos. A Maria se surpreende consigo mesma.
O texto tem diversas referências, como os filmes de Mazzaropi. Este tipo de humor precisou ser atualizado para a sensibilidade atual?
Lília Cabral: Na peça de teatro, as referências eram muito arquetípicas, mas no cinema, tinha que ser diferente. Algumas caminhadas da Maria me lembravam de Noites de Cabíria, porque existe um caráter felliniano nestes personagens bem caracterizados. São figuras atípicas, mas ninguém duvida que sejam reais naquele contexto. Você vê a mulher gorda em Amarcord, com o menino enfiado no decote, e não questiona, não acha que o Fellini quis forçar o riso fácil. Aquilo é possível.
As nossas referências vinham de momentos cômicos que tinham credibilidade, mas não fizemos nenhuma atualização. Eu convivi bastante com o Carlos Manga, que me dizia: “A comédia tem um tempo certo, é uma matemática”. Você pode mudar um pouco o tempo das falas, mas é só isso. Esse ritmo sobrevive, ele não se modernizou. Podemos transformar uma coisa ou outra na história, para torná-la mais atual, mas a forma da comédia é a mesma.
A atuação sofreu muitas modificações do palco ao cinema?
Lília Cabral: São composições completamente diferentes. O corpo no teatro precisava ser largo, exagerado na forma de andar. No cinema, seria impossível fazer assim. Maria é uma mulher vaidosinha, mimosa, com um enfeite no cabelo. Adoro quando ela diz toda singela: “Estou nas mesnospausas”. Se eu exagerasse para brincar com isso, perderia o tom do texto.
Nos palcos do Cine Ceará, você disse que estava particularmente feliz por interpretar uma mulher da sua idade. Como enxerga a oferta de papéis femininos atualmente?
Lília Cabral: É lógico que eu não posso comparar quando uma atriz está começando ou quando já tem uma carreira confirmada. Mas eu não tenho a preocupação de encontrar papéis de mulheres mais novas. A maturidade nos faz mudar muito, e para melhor. E sempre quero ser uma pessoa melhor. Talvez eu tenha menos papéis daqui para frente, mas me inspiro em grandes atrizes que estão sempre em evidência.
A própria Fernanda Montenegro fez uma viagem bem rápida ao Cine Ceará, apresentou A Vida Invisível e voltou no dia seguinte, às oito horas da manhã. Ela tem 90 anos! Nunca mais vou reclamar depois disso! A gente precisa respeitar o nosso tempo, até porque eu me acostumei a conviver com um grupo de atrizes com vinte anos a mais do que eu, e são pessoas muito sábias. Eu absorvi um pouco disso.