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    Cine Ceará 2019: Karim Aïnouz fala sobre A Vida Invisível e discute Oscar, Bacurau e "melodrama em tempos de crise" (Exclusivo)

    A questão dos filmes estratégicos.

    Em meio a uma noite cheia de surpresas no 29º Cine Ceará - Festival Ibero-Americano de Cinema, A Vida Invisível ganhou a sua primeira exibição oficial no Brasil. O drama dirigido por Karim Aïnouz foi escolhido como representante do Brasil na corrida por uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional em 2020.

    A trama, adaptada do livro "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", de Martha Batalha, apresenta duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Júlia Stockler) que vivem no Rio de Janeiro dos anos 1950, em uma família conservadora de imigrantes portugueses. Na tentativa de se libertarem, ambas saem de casa, mas acabam se perdendo de vista. Assim, passam muitos anos procurando uma à outra, enquanto imaginam a vida dos sonhos da irmã distante.

    Este "melodrama tropical" já tinha conquistado um prêmio inédito no Festival de Cannes, vencendo a mostra Um Certo Olhar, e despertou reações muito calorosas do público no Cine São Luiz, em Fortaleza. O AdoroCinema conversou com Karim Aïnouz sobre o projeto, que estreia nos cinemas em 19 de setembro:

    O filme faz vários saltos temporais. Como decidiu o que precisava mostrar, e o que poderia ser sugerido?

    Karim Aïnouz: Talvez esse seja o meu filme mais clássico até hoje em termos narrativos. Foi interessante fazer um filme clássico, mas isso levantava uma questão no que diz respeito ao livro. No texto original, setenta anos se passam, mas no filme são oito anos, e depois fazemos um grande salto à frente. Com nossos roteiristas, a gente se perguntava: “Como vamos fazer essas elipses?”.

    Vou te confessar que, no papel, elas eram péssimas. Quando você lida com a passagem do tempo, você costuma criar uma ponte, mas a elipse te catapulta para a próxima ação, sem transições. Então as transições eram muito diferentes no roteiro. Tinham recursos como a mão de uma personagem cortando para a mão da outra. Foi muito bom poder afinar isso na montagem. A gente descobriu o filme quando fez o seguinte corte: Eurídice briga com o marido, está grávida, e depois de um corte, nós a vemos cinco anos depois, num lugar misterioso. Ficamos à vontade para fazer isso, trocando de música, por exemplo. Era importante construir a elipse como uma catapulta. Ela precisava ser brutal, como uma facada na narrativa.

    Quanto ao que fica de fora, obviamente o livro trazia muito mais elementos narrativos. Mas escolhemos cerca de doze momentos centrais na vida de cada uma, como num álbum de família. Quais são os grandes rituais familiares obrigatórios? São o nascimento, a morte, o casamento, as festas etc. Escolhemos os instantes emblemáticos, e depois ficamos pensando como saltaríamos de um para o outro, tomando o cuidado para que fossem dramaticamente contundentes e necessários para contar a história. Pensamos em momentos que, quando suprimidos, não fariam falta, mas funcionariam como catalisadores.

    Rogério Resende / Cine Ceará / Divulgação

    Esta é uma história de amor, mas ao invés da paixão romântica por um homem, trata-se do amor entre duas irmãs. Isso muda a nossa expectativa do melodrama. 

    Karim Aïnouz: O melodrama sempre me interessou muito. É curioso que ele tenha cara de filme de vovozinha, cara de filme que se fazia tempos atrás. Mas em momentos de crise, acredito que ele seja o gênero mais produtivo, porque ele representa o mundo contra o indivíduo. Por isso, a escolha do melodrama pareceu clara, assim como era evidente que queríamos atualizá-lo. Essa não poderia ser a história de uma mulher que sofre por não ter o homem dos seus sonhos.

    Era importante que o filme não fosse fofo ou meigo, até porque a primeira experiência sexual de uma mulher é muito violenta, por exemplo. O parto é algo selvagem; a morte é traumática. O melodrama precisava ser físico, subcutâneo, e que as ações não fossem adocicadas. Este é um filme sobre a crueldade. Por isso, os personagens masculinos são os mais difíceis de construir. Em determinado momento, numa versão anterior do roteiro, o projeto foi considerado androfóbico. Eu pensei: “Por que não fazer um filme androfóbico? Depois de tantos projetos misóginos, eu não teria esse direito?”. Mas pensei que este seria um gesto pouco produtivo, que poderia desvalorizar o discurso como um todo.

    Então a estrutura do sistema patriarcal é a vilã do filme, mas isso não se concretiza num único personagem, é apenas uma teoria. Criamos os personagens tentando entender como eles reproduziam esse sistema. Para mim, era importante manter a condição de imigrante do pai, porque ele se vê na obrigação não só de manter a tradição, mas de obter sucesso na nova pátria, o que o torna extremamente conservador. Era importante entender que o homem possui um exercício tóxico dentro do patriarcado, e que ele cumpre uma função social de determinado sistema de valores. Queria que o marido de Eurídice fosse tóxico, mas não malicioso e cheio de si, apenas um homem meio ignorante. Tentamos trazer sutileza a essas figuras para que não se tornassem vilões, o que demonizaria o masculino e criaria uma rejeição ao filme.

    O que a campanha pelo Oscar e a eventual vitória significam para você? 

    Karim Aïnouz: A campanha não é complexa de entender: é uma campanha eleitoral. De um lado, você tem um grupo capaz de eleger, e do outro lado, pessoas fazendo campanha para serem eleitas. Então você precisa fazer palanque, discurso, jantar e se aproximar do eleitorado. Você não precisa convencer os votantes, mas precisa encantá-los. Por um lado, o filme precisa encantar as pessoas, mas por outro lado, eu preciso estar próximo para ajudar neste processo de catalisação em pouco tempo.

    O Oscar é um prêmio da indústria, e especificamente, da indústria mais financeiramente poderosa do mundo. A premiação dá visibilidade por possuir a maior concentração de imprensa no mundo. Em um país onde a cultura está sendo questionada e censurada, considero importante que a gente envie um discurso para lá e possa ser ouvido. Se não me engano, o último filme brasileiro indicado foi Central do Brasil, mas seria importante a gente ocupar este lugar de novo, não apenas para ter um lugar fixo, mas pela celebração de uma trajetória de políticas públicas que dão certo.

    Central do Brasil foi um filme da retomada, de vinte e dois anos atrás. Agora, estamos num cenário completamente diferente para o cinema brasileiro, com uma indústria mais consolidada. O prêmio poderia ser a coroação desse processo, mas se não for neste ano, será no próximo, ou no outro.

    Nossos filmes de maior destaque atualmente brincam com gêneros populares, no momento em que se desprestigia a cultura nacional: A Vida Invisível subverte o melodrama, enquanto Bacurau subverte o faroeste. 

    Karim Aïnouz: A gente tem uma função estratégica gigantesca nisso. Gênero é um código de linguagem: para entender algo, você precisa ter uma referência prévia, e o gênero é esta referência. Quando você usa estas ferramentas, você não precisa inaugurar um código. Estrategicamente, é importante falar a língua que o espectador fala, mesmo que seja com um sotaque particular. Esses dois filmes falam a língua que o grande público fala: A Vida Invisível utiliza a linguagem da teledramaturgia, mas com outro sotaque, enquanto Bacurau faz algo fascinante por corresponder à demanda reprimida do brasileiro por filmes de ação. A gente costuma satisfazer essa demanda com o filme estrangeiro, mas por que não fazer com o nosso? Com nosso sotaque e nossa cor?

    Não sei o que o Kleber e o Juliano pensam, mas eu acredito que BacurauA Vida Invisível sejam dois filmes estratégicos. Um deles celebra a resistência de maneira mais frontal, e o outro critica a ordem patriarcal imposta. O gênero traduz este discurso de modo mais fácil ao grande público. Além disso, esses gestos tiram nossa produção do lugar de “filme brasileiro” enquanto gênero. Às vezes a pessoa vai ao cinema pensando: “Não quero ver um filme brasileiro”. Mas eu não compro um sabonete porque ele é brasileiro, eu compro porque é bom, e felizmente ele é brasileiro também. Os norte-americanos criaram essa ideia de cinemas nacionais, enquanto os filmes produzidos lá seriam apenas “cinema”. Este raciocínio é muito perverso, e acredito que estes gestos nacionais proponham um caminho inverso: que a gente veja o filme pela linguagem deles, pelo que estão falando e como estão falando. Esta é uma conquista grande.

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