A verdadeira essência da crítica é a análise. E a essência do trabalho de um crítico é a sua análise do filme: ser capaz de determinar a premissa e como o filme funciona dentro dela. Se um crítico faz bem o seu trabalho, ele vira um verdadeiro integrante da plateia por ter uma resposta minuciosa, humana e emocional à obra.
De todas as maneiras possíveis das quais esta matéria poderia ter sido iniciada, talvez a fala seminalítica do cineasta Babak Payami, nos primeiros minutos do documentário Crítico, realizado por Kleber Mendonça Filho entre 1998 e 2007 seja a mais congruente com a trajetória profissional e artística do próprio diretor que dá título ao texto. Mais recentemente responsável pelo premiado Bacurau, Kleber possui uma carreira cinematográfica tão atípica quanto brilhante — mas para entendermos como sua realização foi possível, é preciso voltar alguns anos no tempo. Vamos aos poucos!
AS GRADES DO CONDOMÍNIO
As grades do condomínio trazem proteção e medo (como já bem escreveu Marcelo Yuka). Com isso em mente, Kleber decidiu criar seu primeiro experimento público fora da área da crítica cinematográfica, ofício ao qual se dedicava inteiramente entre as décadas de 80 e 90. Em 1997, o curta-metragem Enjaulado foi lançado de maneira tímida, contando a história de um rapaz de classe média que, após presenciar um ato de violência em sua vizinhança, tranca-se na própria casa, cercado apenas... pelas grades.
Ainda não sabíamos, mas a solitude auto infligida e o cerceamento tornariam-se referências cada vez mais presentes e sutis dentro das obras futuras do cineasta recifense. Mesmo com poucos minutos de tela e tentativas que ainda migravam entre o digital e o 35mm, já era evidente, na época, que inspirações do cinema clássico (como Repulsa ao Sexo, por exemplo) misturavam-se ao cotidiano dos habitantes presos entre os pequenos privilégios e as paranoias justificadas da própria classe média.
Alguns anos depois, em 2002, Kleber realizou A Menina do Algodão, baseado em uma forte lenda urbana que corria boca a boca dentre os estudantes de Recife. Mas foi em 2005, com Vinil Verde, que o jornalista ainda em busca da própria identidade criativa começou a ser mostrado para o restante do mundo.
O VERDE DO MUNDO
Com sua obra de 17 minutos sobre a sórdida história de uma menina que vê sua mãe desfalecer aos poucos depois de desobeceder seu pedido de não ouvir um misterioso vinil verde, Kleber ultrapassou as barreiras geográficas e adentrou sua primeira seleção internacional: a Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes em 2005. No mesmo ano, o curta-metragem Eletrodoméstica foi lançado, novamente refletindo as reflexões e estigmas do diretor a respeito das questões que assolam a classe média em geral.
2006 começou com a estreia de Noite de Sexta, Manhã de Sábado, primeiro curta no qual o cineasta se arriscou pela área do romance, desta vez usando a tecnologia como principal pretexto. Foi apenas no ano de 2008 que Kleber veio a realizar o seu primeiro longa-metragem, o documentário Crítico, contando com depoimentos e entrevistas realizadas por cerca de uma década com pessoas do mesmo ofício que ele mesmo trabalhou por tanto tempo. Além disso, os próprios profissionais do cinema e audiovisual davam seus relatos a respeito das diferentes concepções da crítica.
O SOL DE RECIFE
Em 2009, três coisas importantes para a nossa história acontecem. A cidade de Recife, capital de Pernambuco, fica inexplicavelmente fria, em contraponto a todos os anos que passou como um dos lugares mais quentes do Nordeste; completavam-se 20 anos desde o lançamento do curta documental Ilha das Flores, dirigido por Jorge Furtado, até então dono do título de curta-metragem mais premiado do Brasil; Recife Frio, de Kleber Mendonça filho, passa a ser o novo líder desta categoria, com mais de 50 premiações ao redor do mundo.
Daí em diante, a ascensão foi contínua. O diretor lançou-se ao mercado mais popular com a realização de Som ao Redor, em 2013, e passou a ser alvo de ambição para grandes estúdios. Com estreia em 1° de fevereiro de 2012 no Festival de Roterdã, na Europa, o filme foi escolhido como o representante brasileiro para tentar uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional (na época, Melhor Filme Estrangeiro), mas não chegou à seleção final. A partir de O Som ao Redor, todos os longas de Kleber seriam, ao menos, cotados para entrarem novamente como representantes nacionais na premiação. Mas alguns problemas ficariam no caminho.
UN COUP D'ÉTAT
Estas foram as palavras seguradas em uma placa por Kleber durante sua participação no Festival de Cannes de 2016, onde concorria com o filme Aquarius. Alguns anos depois de traçar um paralelo social entre o fracasso brasileiro na Copa do Mundo e a desigualdade, com seu último curta-metragem, A Copa do Mundo no Recife, o diretor chegou com aquele que é considerado por muitos a sua melhor obra até hoje.
Estrelado pela experiente Sônia Braga e coestrelado por alguns atores já famosos por trabalharem anteriormente com o cineasta, como Maeve Jinkings e Irandhir Santos, Aquarius foi indicado à cobiçada Palma de Ouro, que acabou sendo levada por Eu, Daniel Blake. Na ocasião, a equipe e o elenco foram ao Festival segurando cartazes denunciando suas percepções a respeito do impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Entre mensagens de "votos foram incinerados" e "um golpe de Estado está ocorrendo no Brasil", a equipe causou certa polêmica, especialmente nas terras nacionais.
Nada nunca foi evidenciado, mas há muitos que digam que Aquarius era a produção brasileira mais certa a representar nosso país na corrida pelo Oscar, e que o protesto organizado pelo cineasta contribuiu negativamente para que ele não fosse escolhido. No entanto, Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert também mostrou-se uma obra extremamente elogiada e digna de ter sido nossa representante.
VIVER OU MORRER
Chegamos à Bacurau. Com traços de faroeste, críticas fortes ao bairrismo e ao momento político atual, o último filme de Mendonça Filho está atualmente em cartaz nos cinemas e foi responsável também por uma vitória extremamente importante para o país no Festival de Cannes. Desta vez, a direção vem em parceria com Juliano Dornelles, que já assinou roteiro, produção e diversas outras áreas nos curtas feitos por Kleber.
Assim como foi prudente iniciar este artigo com as palavras do documentário Crítico, também seria justo propôr um pequeno debate sobre a concepção artística de Kleber através de uma citação que chega ao final de seu filme de 2008. Nas palavras de Tom Tykwer, "um filme é apenas uma ilusão. Quando ele fica pronto, está sozinho, e não é uma representação do artista, e sim uma representação de si mesmo. Se você gosta de mim agora, não hesite em me odiar no meu próximo filme". Quando se trata de Kleber Mendonça Filho, no entanto, sua arte parece andar ao lado de seu coração: e em um período grave de cerceamento ao que é autoral e verdadeiro, talvez isso seja exatamente aquilo que precisemos.