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    No Coração do Mundo: Diretores e Grace Passô falam sobre o faroeste "maximalista" que mostra outro lado do Brasil (Exclusivo)

    Os cineastas Gabriel Martins e Maurílio Martins misturam faroeste, suspense, drama e humor.

    Estreia hoje nos cinemas um dos projetos nacionais mais ambiciosos e sensíveis do ano: No Coração do Mundo, dirigido por Gabriel Martins e Maurílio Martins. Os diretores combinam drama, faroeste e suspense para traçar um retrato bastante pessoal de Contagem, em Minas Gerais. Leia a nossa crítica.

    Na trama, Grace Passô interpreta Selma, moradora que sonha em conseguir um pouco de dinheiro para partir sair da cidade em busca de um destino novo. Ela planeja fazer um roubo dentro de um condomínio fechado, mas para isso, precisa da ajuda do amigo Marcos (Leo Pyrata) e de Ana (Kelly Crifer), namorada dele. Apesar de resistirem a princípio, eles aceitam se arriscar.

    O AdoroCinema conversou em exclusividade com os diretores e Grace Passô sobre o projeto, o único longa-metragem nacional em competição no último Festival de Roterdã:

    Divulgação

    A primeira canção do filme compara as cidades mineiras ao Texas. Que imagem de Minas Gerais vocês queriam compor?

    Gabriel Martins: A gente encara a canção do MC Papo, “BH é o Texas”, como uma coisa ao mesmo tempo séria e divertida sobre a atmosfera épica do faroeste. Isso nos orientou muito para a trilha sonora. Contagem, o curta-metragem que dá origem a No Coração do Mundo, tem trilha sonora com piano, com orquestras, tem uma dimensão épica. Então quando a gente abre o filme com essa música, existe uma espécie de piada ali, mas ao mesmo tempo, tem um gênero de cinema muito conhecido e muito visto, que pode coexistir com a narrativa contemporânea. No Coração do Mundo está construindo um imaginário possível dentro de vários imaginários possíveis para aquele lugar. Isso tem um pouco a ver com a ideia de gênero, neste caso, especificamente, o faroeste de Era Uma Vez no Oeste e Era Uma Vez na América, quando “era uma vez” correspondia ao espaço fabular. No Coração do Mundo carrega essa ideia de fabulação.

    Maurílio Martins: Além disso, dentro da nossa cinematografia, o bairro Laguna é cinematográfico. Ainda que a gente se valha de locações reais, o cinema transforma essa cidade. Existe Contagem, a cidade, e existe a Contagem da Filmes de Plástico, com características próprias. O filme não é documental no sentido de transpor a realidade fidedigna daquele local para as telas. O uso do cinemascope e a trilha grandiosa, ajudam a criar este épico. O fato de fazer cinema na porta de casa tem esses privilégios, que é fazer cinema com linguagem, ficcionalizando tudo, se valendo da estrutura que a cidade permite. A música brinca com isso: não se trata de uma exaltação ao povo mineiro, ainda que fale de Minas Gerais de um modo incrível porque aborda a região metropolitana, as periferias, o povo que está à margem. A gente filma pessoas dali mesmo, os amigos do bairro posando para a câmera.

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    No Coração do Mundo, assim como Temporada e Ela Volta na Quinta, são filmes feitos entre amigos, com mães e irmãos atuando, além de atores frequentes. De que maneira essa produção é pensada? 

    Gabriel Martins: Muitas vezes a gente já escreve os personagens pensando em certas pessoas. Por exemplo, em TemporadaNo Coração do Mundo a mãe do Thiago, que é um dos sócios, também trabalha nos nossos filmes coordenando a equipe de catering. No Temporada, a Dircinha faz a dona de uma das casas que a Grace visita, e em No Coração do Mundo ela é a Dona Olga, a chefe do Miro. Eu rodei um longa-metragem em dezembro do ano passado, Marte 1, em que ela interpreta a síndica de um prédio. Na verdade, são figuras que fazem parte do nosso imaginário, e a gente começa a querer escrever projetos para elas. Isso vai aparecendo às vezes desde o roteiro, às vezes no processo de pensar o elenco. Às vezes é uma pessoa que nunca tinha atuado com a gente, mas estava muito próxima, seja num papel de figuração, coadjuvante ou até principal. Então a decisão de escalar pessoas próximas foi algo natural. No fim, temos um grupo enorme de pessoas que fazem parte da nossa vida e a gente acha que são muito boas na tela. Se não fossem, não quisessem, não teriam nenhuma obrigação de participar. Mas ficam naturais, atuam de forma profunda. 

    Grace Passô: Esta é uma chave muito particular para trabalhar com os dois, e também aconteceu com o André Novais em Temporada. Existe uma negociação o tempo inteiro entre o que você quer propor e o roteiro que eles já escreveram. Eles deixam o diálogo vivo o tempo inteiro. Isso provoca uma desmistificação do roteiro, à medida que a palavra escrita se transforma em fala. Eles dão uma liberdade para a nossa dicção se apropriar do texto escrito. Muita gente esquece que a palavra escrita e a falada são coisas diferentes e isso é um grande tabu, inclusive na atuação. Tem gente que se distancia muito, até porque a fala é uma forma de organização de poder. Mas o roteiro do Gabriel e do Maurílio é um espaço vivo, onde a gente improvisa enquanto recebe um direcionamento pelas ideias deles. O diálogo não fica nem engessado, nem solto, sem direção.

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    Grace, tanto em No Coração do Mundo quanto em Temporada, simboliza um ideal de fuga: a mulher que chega de outro lugar e já está prestes a partir de novo, não se sabe para onde...

    Grace Passô: Eu adoro observar as coisas que se repetem em determinados lugares, obras ou artistas dentro de um mesmo coletivo, porque as repetições, as obsessões na arte, são linguagens. A gente associa determinadas coisas entre Juliana (Temporada) e Selma (No Coração do Mundo): a ideia de fuga, a obsessão pelo carro, pelo futebol. São elementos que fazem parte da obsessão do nosso imaginário, é uma pulsão cheia de significados. A própria ideia de sair ou ficar naquele espaço é recorrente: quando você mora no interior, isso perpassa a vida de muita gente. A ideia da margem sempre vai existir, mas ela está em movimento porque a margem, as fronteiras, os centros estão em movimento. Então essa ideia de ir para outro lugar é muito ampla, ela pode ser lida de muitas formas. O Eryk Rocha me falou uma coisa bonita: "Eu tive muito uma leitura de Contagem como o Brasil de hoje, essa dúvida do brasileiro entre ficar ou sair daqui”. 

    O filme combina drama, suspense, faroeste, "filme de assalto", e tem doses generosas de humor. De que maneira enxergam a mistura de gêneros?

    Gabriel Martins: Eu acredito que isso venha do fato de a gente gostar de muita coisa diferente, e de No Coração do Mundo querer fazer de tudo. Durante a feitura, e depois da feitura do filme, eu e Maurílio sempre discutíamos sobre dez outros filmes que a gente pode fazer ou não algum dia. Inclusive, existe a ideia de fazer outro filme sobre a personagem da Mc Carol. Por ser um filme de tapeçaria, com vários personagens, a gente consegue, pela extensão do processo, chegar no "filme de assalto" com outra roupagem, sem ser um gênero que se esgota em si mesmo. Quando chegamos nessa parte, o gênero se torna uma ampliação do fator humano. Esse filme de ação vem como uma solução para a pressão que vinha sendo construída o tempo todo. Gosto quando os múltiplos gêneros vão subvertendo as expectativas para os personagens.

    Maurílio Martins: Também existe no projeto uma confluência de referências não só fílmicas, mas musicais. Existe um pouco de história oral, a partir dos casos que ouvimos e depois levamos ao filme. Quando nós fizemos Contagem, era um curta-metragem de conclusão de curso, e depois escrevemos uma monografia baseada em Apichatpong Weerasethakul. A gente já se encantava pelo modo como o Apichatpong filmava os personagens à margem das coisas, e como ele subvertia os gêneros dentro do filme. Nós assumimos esse desejo infantil se filmar, uma vontade de colocar tudo o que a gente gosta. Então tem o western na hora de fazer a trilha, enquanto trouxemos elementos dos anos 1980... Se eu fosse definir esse filme, eu definiria como um filme "maximalista": tudo ali está em excesso, as cores estão em excesso. Além dos gêneros que se entrelaçam, além da brincadeira com todas as referências, ainda tem esse desejo nosso de que tudo coubesse nesse filme. Sem falsa modéstia, acho que a gente conseguiu levar um pouco mesmo de tudo que é a vivência minha e a do Gabriel, atreladas à vida desse espaço em que a gente vive e que a gente filma.

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    Tem sido comum para a imprensa e a crítica interpretar os últimos filmes nacionais como obras de resistência, como respostas diretas ao governo atual. O que pensam desta leitura sintomática?

    Gabriel Martins: Às vezes parece que, simplesmente por fazer um filme sincero e bem feito, ele automaticamente vira um instrumento de resistência - tal é tamanho do drama que a gente está vivendo. É difícil para a gente assumir este lugar, porque somos pessoas sonhadoras, sabemos o que significa o cinema, o que significa filmar com dinheiro público. Foi muito importante fazer o filme dessa forma, isso nos assegurou uma sinceridade muito grande, fez com que a gente pudesse ter um controle sobre os nossos projetos. Mas confesso que é difícil assumir esse lugar para si, porque é algo de fato muito natural: a gente não precisa pensar em posicionamento, nós somos essas pessoas.

    Maurílio Martins: Talvez o que esteja em voga seja anterior à pergunta: é a discussão de novos corpos que avançam para frente da tela, que vivem esse contraponto da ilusão e desilusão constante. Talvez essa impressão venha do fato de vermos novas formas de vivência colocadas em um filme de ficção. Essas pessoas, quando são levadas diante da tela com essa carga ficcional, talvez provoquem esses questionamentos. Quando o filme faz uma eleição por pessoas à margem e as coloca ali, ele talvez possa gerar esse debate sobre o enfrentamento, mas essas pessoas já estão enfrentando o mundo e o Brasil há um tempo, sabe?

    Gabriel Martins: O Carlão Reichenbach, em Brasília, escreveu um texto sobre Contagem, com o título “Fez-se luz em Contagem”. Acho muito bacana a ideia de dar luz a alguma coisa, tanto no sentido do parto quanto no sentido cinematográfico, porque o cinema é essencialmente luz - sem luz não existe imagem. Persiste a ideia de colocar na luz, revelar pessoas que já estão presentes, para que existam também como imagem. Foi uma ideia bonita do Carlão, porque é como eu definiria o que a gente está fazendo.

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