E se uma história fosse repetida tantas vezes que se tornasse realidade? Essa é a premissa de Histórias Assustadoras para Contar no Escuro, filme produzido por Guillermo del Toro. A produção é inspirada na coleção de livros escrita por Alvin Schwartz e ilustrada originalmente por Stephen Gammell entre os anos 80 e 90, que foi descoberta por del Toro em um sebo no Texas, conforme o cineasta revelou na abertura de sua Masterclass durante a San Diego Comic-Con 2019. Na época, o diretor não tinha condições de comprar os livros, por isso lia nos corredores da livraria. Os contos foram tão envolventes para ele, que del Toro retornou àquele sebo algumas vezes para reler e eventualmente levou a obra para casa. Tanto que, anos depois, resolveu adaptá-los para as telonas.
Guillermo del Toro aproveitou o evento para contar como surgiu a ideia do filme, explicar o curioso método de escolha das histórias que entrariam no roteiro e dar alguns insights sobre a criação dos monstros. O AdoroCinema pôde acompanhar ao retrito painel durante a convenção, que foi uma espécie de "aulão" sobre Histórias Assustadoras para Contar no Escuro.
"O que me chamou a atenção foram as ilustrações de Gammell, eram tão arrepiantes e perturbadoras. E o jeito que Alvin Schwartz recontou as histórias foi tão incrível", disse del Toro sobre o primeiro contato que teve com o livro, citando que os contos são amplamente conhecidos em diversos países, como lendas ou folclores, sendo transmitidos através do boca a boca. "Você deve tê-las escutado de uma maneira ou de outra. Muitas delas aconteceram com um amigo de um amigo seu... Então precisam de uma simplicidade que é incrivelmente complicado de escrever."
O cineasta passou anos sem ter contato com Histórias Assustadoras para Contar no Escuro. Em 2001, houve uma exposição com as ilustrações originais do livro, na época em que del Toro estava fazendo Blade 2, e ainda não tinha condições financeiras para comprá-las. "Mas pensei, eu nunca mais vou vê-las, então fui muito imprudente financeiramente e comprei uns cinco ou seis desenhos", admitiu.
Foi somente há cinco anos, em 2014, que del Toro resolveu transformar as histórias em filme. Entretanto, eram tantas que surgiu a ideia de fazer uma antologia, contando cada uma separadamente. Só que essa sugestão logo foi descartada pelo produtor. "Eu não queria fazer uma antologia de filmes, porque elas sempre são tão ruins quanto a pior de suas histórias, elas nunca são tão boas quanto a melhor das histórias", soltou del Toro, arrancando risos da plateia. A solução veio de uma inspiração de O Labirinto do Fauno: "Lembrei que criei o 'Book of Crossroads', que é um livro mágico que mostra o futuro para quem o lê, e se escreve para você e somente você", comentou. "Então pensei que seria ótimo ter um livro que lê para você, ao invés de você ler, e escreve sozinho aquilo que você mais tem medo. E então a história acontece".
Apesar de considerar que os contos são atemporais, del Toro queria incluir um pouquinho da atualidade na trama, ou pelo menos elementos que se repetem até hoje. "O tema se tornou as histórias que contamos sobre nós mesmos. Acho que isso é bom para 1968, quando o filme é ambientado, ou para hoje em dia, com as redes sociais — que é o modo como nós nos moldamos para uma conversa, e isso vira uma história. Há inclusive um personagem que é o equivalente a um praticante de bullying das redes sociais, mas nos anos 60. Pareceu bastante prudente mostrar isso agora."
Para del Toro era bastante importante situar o filme nos anos 60, e não 80 (quando os livros foram lançados), porque isso faria com que os personagens tivessem menos recursos. "Eles não podem procurar no Google, não podem usar o celular...", afirmou. "Com celular, nos filmes de terror, vemos só os clichês: 'ah, que sinal ruim', 'que droga! Eu não tenho sinal!', 'estou com uma barra de bateria!'", alfinetou, arrancando risos da plateia. "Mas além disso, ambientar na década de 60 faz com que as histórias corram mais devagar. Hoje em dia, com as redes sociais, nós processamos as informações mil vezes mais rápido que qualquer um na história da humanidade. Paramos em qualquer lugar e, ao mesmo tempo, vemos um vídeo de gatinho e uma explosão que aconteceu na Europa. Eu não conseguia lidar com os jovens nesse filme passando por esse momento, eles tinham que sentir mais. Era uma época em que uma guerra estava acontecendo, muito distante, com jovens morrendo, e isso vinha de uma história que alguém contou a eles. E a maioria nem sabia apontar no mapa onde aquele conflito estava ocorrendo".
Ao contrário do que alguns acreditam, Histórias Assustadoras para Contar no Escuro não foi dirigida por del Toro, mas pelo norueguês André Øvredal. Quando explicou a escolha do diretor que comandaria a produção, o ganhador do Oscar por A Forma da Água brincou que precisava de alguém com um "sotaque ridículo" — mais do que o seu, para que ele mesmo ficasse parecendo com o galante e saudoso ator Laurence Olivier. Depois de arrancar gargalhadas da plateia, aproveitou para elogiar os trabalhos de Øvredal — o drama de terror O Caçador de Troll e o suspense A Autópsia (que ele fez questão de apontar que é um dos favoritos de Stephen King) — e comentou que o diretor consegue trazer drama às produções sem deixar de lado a elegância do gênero de terror.
Øvredal, por sua vez, revelou com um sotaque carregado que teve medo de apresentar o projeto para del Toro, mas foi logo surpreendido pela reação calorosa do produtor. "Foi uma das coisas mais aterrorizantes da minha vida contar a minha ideia do filme para ele", disse o diretor. "Falei que tudo depende da criação do tom certo para o filme, mas deixei claro que queria fazer uma obra que fosse assustadora, envolvente, divertida e convidativa. No final, é sobre como os personagens se comportam nas telas. Era muito importante manter o visual das criaturas dos livros."
Também participaram da Masterclass os artistas de maquiagem e efeitos especiais Mike Hill (Homens de Preto 3), Norman Cabrera (The Walking Dead) e Mike Elizalde (Stranger Things), que trabalharam com del Toro em produções como A Forma da Água, Hellboy e Hellboy 2, respectivamente. Ao lado do diretor e do produtor, eles apresentaram vídeos e artes conceituais de algumas das criaturas de Histórias Assustadoras para Contar no Escuro. Todas elas foram criadas usando efeitos práticos, como trajes e maquiagem, que foram combinadas a CGI nas cenas.
"Estávamos criando o design de algo que nos assustava quando crianças", acrescentou Elizalde. "Nós tentamos diversas versões de Harold, o Espantalho, mas o André foi muito claro. Ele disse: 'Eu não quero que isso pareça uma pessoa. Precisa se parecer com uma máscara aterrorizante que está apodrecendo ao sol.' Então foi assim que chegamos na aparência final dele."
Mike Hill, que é artista de efeitos especiais e escultor, trabalhou em cima das ilustrações em preto e branco de Stephen Gammell para montar personagens como a Senhora Pálida — que tem cabelos compridos e olhos bem abertos em um rosto oval. Ele também foi responsável por dar vida ao Homem Furioso, um personagem inédito nas histórias. "Ele não estava oficialmente nos livros, mas era um amálgama de vários personagens", disse Hill sobre a criatura contorcida que era mostrada no telão. "Ele foi na verdade interpretado por um cara chamado Troy James", comentou, enquanto uma gravação impressionante era mostrada. "Como você pode ver, ele é um contorcionista. Nós sabíamos que Troy era tão bom em andar para trás, muito misteriosamente, então decidimos fazer uma cabeça de cabeça para baixo, que é uma cabeça para cima se ele estiver andando para trás. Então, isso realmente foi muito sobrenatural e acrescentou um semblante sobrenatural a isso".
"Todas as criaturas, a Senhora Pálida; Harold, o Espantalho; todas elas, 90% de tudo é físico. E então adicionamos o digital de 10% que o ajusta muito, muito pouco, mas faz você acreditar que está vivo", explicou del Toro. "É extremamente bem sucedido deixar os efeitos físicos conduzirem, e o digital seguir". A discussão levantada por eles no painel ponderou que o uso de efeitos práticos facilita para os atores. Segundo Øvredal, em cena, os artistas podem se assustar verdadeiramente, além de sentir a tensão, e não só "reagir a uma bola de tênis" como em filmes de grandes efeitos visuais.
"Para criar uma ilusão realmente convincente, você usa todas as ferramentas à sua disposição", afirmou Mike Elizalde. "O digital é uma ferramenta tão viável para nós, apenas para esse propósito, simplesmente para empurrá-lo para o próximo reino, onde seu subconsciente está lhe dizendo: 'Eu sei que o que estou olhando é real, mas realmente há algo muito errado nisso'. Há algo muito diferente, mas sutil. Isso é o que realmente vende a ilusão desses grandes personagens".
De tantas histórias dos livros, o difícil foi escolher quais delas entrariam na produção. Guillermo del Toro revelou que teve que deixar de fora algumas de suas favoritas, como "The Red Ribbon" e "The Window". "Fizemos um American Idol [para decidir]. Todos votamos nos finalistas e escolhemos", comentou, ponderando que um detalhe importante era que a história escolhida se encaixasse para os personagens do filme. "Chuck, por exemplo, que é assombrado pela Senhora Pálida, é sempre abraçado fortemente por sua mãe, ela não o solta, e ele quer sair disso. Ruth, é uma Rainha do Baile de Formatura e está sempre preocupada com a aparência e ganha o Ponto Vermelho. Mais do que escolher as histórias para os filmes, as dez ou doze que mais gostamos, pensamos, como vamos adaptar aos personagens?".
Histórias Assustadoras para Contar no Escuro está em cartaz nos cinemas.