Apesar da divisão política no país, poucas pessoas discordarão que o Brasil sofreu uma transformação brutal desde 2013, quando as manifestações populares iniciaram o processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, à tomada de poder de Michel Temer, à prisão de Lula e à eleição de Jair Bolsonaro.
O cinema nacional não demorou a se apropriar do tema para refletir sobre os rumos da nação. Entre as ficções, comédias como O Candidato Honesto 1 e 2 trataram de parodiar o momento, enquanto suspenses policiais como Polícia Federal - A Lei É para Todos transformaram o juiz Sérgio Moro e as forças policiais em heróis da nação.
De posicionamento igualmente claro são três documentários de longa gestação, que enxergam a destituição de Dilma e a ascensão da extrema-direita em tom alarmante: O Processo (2018), dirigido por Maria Augusta Ramos, Excelentíssimos (2018), dirigido por Douglas Duarte, e Democracia em Vertigem (2019), dirigido por Petra Costa.
Seria fácil decretar que os três projetos são "de esquerda", o que provavelmente não constitui um erro. O problema seria parar por aí, supondo que, pelo olhar progressista, eles trazem o mesmo discurso e se equivalem. Afinal, assim como existem direitas muito distintas dentro do espectro político nacional, as esquerdas também variam bastante.
Além disso, pode-se dizer que os três cineastas utilizam o cinema de maneiras muito diferentes. O Processo adota um ponto de vista bastante específico ao se focar nos representantes do PT no Senado. Para Maria Augusta Ramos, o fato de acompanhar dia após dia as estratégias jurídicas dos aliados de Dilma e Lula permite que as vozes dissonantes sejam percebidas por oposição. Em outras palavras, José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffman e companhia funcionam como a parte que representa o todo.
Mesmo mostrando algumas manifestações nas ruas ou batalhas no Congresso, o filme se desvia do clamor popular para discutir, essencialmente, a legalidade do impeachment. Quais foram os fundamentos jurídicos para a destituição da presidenta? Para além da vontade de uns ou de outros e da popularidade de cada pessoa envolvida, havia bases sólidas para os trâmites legais?
Por estas escolhas, O Processo se torna o mais árido dos três filmes, e também o mais profundo em sua investigação política e cinematográfica. Como de costume, a cineasta evita depoimentos, narrações e outros recursos didáticos, deixando que as imagens falem por si próprias. O tom mais “frio” jamais simula imparcialidade, apenas permite que a montagem se encarregue de articular por si própria o ponto de vista da direção.
O documentário estreou num contexto muito particular: o Festival de Berlim, um dos eventos internacionais mais politizados e receptivos ao cinema brasileiro. Coproduzido pela Berlinale, o filme foi muito bem recebido, ficando com o terceiro lugar da Mostra Panorama, onde concorria com aproximadamente quarenta produções do mundo inteiro. Quando foi lançado no Brasil, tornou-se o documentário de maior bilheteria de 2018, com 50 mil espectadores. Leia a nossa crítica.
Excelentíssimos, por outro lado, efetua um apanhado amplo dos últimos anos da política nacional. O diretor Douglas Duarte narra os principais fatos desde 2013, destacando ao mesmo tempo os argumentos contrários e favoráveis à queda de Dilma, a histeria de ambos os lados pelas ruas do país, a cobertura na mídia, o posicionamento de deputados, senadores e ministros.
A abordagem é muito mais ambiciosa, privilegiando a linearidade histórica para efetuar uma espécie de resumo dos eventos que levaram ao cenário atual. Como trunfo, o diretor apresenta entrevista exclusivas com Carlos Marun e outros políticos que assumem desejar a saída de Dilma a qualquer preço, mesmo sem terem provas concretas de crimes de responsabilidade. Por privilegiar o senso de urgência, traz alguns problemas de som e montagem, relevados em nome da importância temática.
O projeto foi exibido pela primeira vez no Festival de Brasília, um dos festivais mais abertamente engajados do país, onde despertou reações mistas: parte da imprensa o elogiou pela capacidade de colocar o dedo na ferida e pela frontalidade com que aborda o período 2013-2018, enquanto outra parte (na qual se inclui o AdoroCinema) destacou da ausência de um ponto de vista - qual seria a relevância de relembrar os momentos principais sem trazer elementos realmente novos à discussão?
Sem distinções internacionais, nem o suporte de peso da Netflix, Excelentíssimos teve um lançamento discreto nos cinemas nacionais, sendo prejudicado inclusive pela longa duração, que supera os 150 minutos. Estreando em apenas três salas, registrou 1.134 espectadores.
Democracia em Vertigem certamente contou com a maior estrutura de divulgação, por conta do lançamento na Netflix. Disponível em mais de 150 países ao mesmo tempo, foi conquistou críticas extremamente elogiosas de alguns dos maiores jornais do mundo - o New York Times o colocou na lista de dez melhores filmes do primeiro semestre de 2019, por exemplo. A boa recepção no Festival de Sundance também contribuiu à divulgação.
Petra Costa adota o tom mais pessoal dos três filmes. Ela narra os principais fatos políticos dos últimos anos, assim como Douglas Duarte, mas faz questão de frisar sua própria experiência durante este período. A diretora fala sobre a sua infância, sobre a esperança depositada no PT, a tristeza de ver Dilma destituída. A diretora ilustra a polarização nacional através de sua própria família, composta por avós empreiteiros, favoráveis à direita, e por pais militantes de esquerda.
Assim, ela estabelece uma ponte entre o público e o privado, o nacional e o local. Ao invés de buscar ser objetiva, assume com clareza seu posicionamento, enquanto tece críticas às alianças efetuadas pelo PT. Por ter sido concluído mais tarde que os dois outros filmes, Democracia em Vertigem pôde avançar na história, conferindo um papel mais importante à eleição de Bolsonaro e às decisões de Sérgio Moro. Leia a nossa crítica.
A estreia na Netflix foi marcada por vasta cobertura na imprensa. Como o serviço de streaming não costuma divulgar seus dados de audiência, não se sabe ao certo quantas pessoas assistiram ao filme - até porque a empresa conta o número de visualizações, sem poder discriminar a quantidade exata de pessoas em frente à televisão. No entanto, é seguro apostar que tenha sido o mais popular entre os três, enquanto reforçou as opiniões epidérmicas sobre o tema. No AdoroCinema, a maioria das notas dos leitores são 5/5 ou 0/5, ou seja, aprovação total ou desaprovação total. O Processo e Excelentíssimos despertaram respostas semelhantes.
Diante de filmes como estes, tão próximos da atualidade, percebe-se a dificuldade do público e dos críticos em separar o real de sua representação. Por mais diferentes que sejam em termos de qualidade, ambição e modo de exibição, foram abraçados ou rejeitados por seu tema, e não por seu valor cinematográfico.
Muitos espectadores se sentiram representados por encontrarem um discurso semelhante às suas próprias opiniões, mas qual seria a função de buscar unicamente ideias semelhantes às nossas? De que vale pregar aos convertidos?
Nestes casos, e para os próximos filmes políticos que virão (Marighella, Bacurau, Polícia Federal 2), o maior desafio não será abarcar a complexidade do momento, nem ser "objetivo" ou "imparcial" (duas impossibilidades evidentes), e sim reestabelecer o diálogo perdido, chegando a pessoas que pensem de maneira diferente.
O intuito não seria de "converter" nem "doutrinar" o lado oposto, apenas se confrontar às diferenças como convém a uma democracia. No final, não há problema se cada lado mantiver seus pontos de vista: estas são as regras do jogo. Pelo menos, haverá a possibilidade de travar contato com novas ideias, algo indispensável à evolução de qualquer sociedade.
O mesmo vale para a arte: quanto mais produções nacionais, e maior diversidade, melhor. O Processo, Excelentíssimos e Democracia em Vertigem não são apenas "o filme da Dilma", "o filme do Lula", e sim obras de arte nacionais, que provocam experiências distintas, únicas, feitas por pessoas do nosso país, e destinadas especialmente para os brasileiros. São obras que se completam unicamente no olhar do espectador. Elas precisam ser vistas, analisadas, debatidas, para então serem realmente amadas ou detestadas.