Dirigido por Paulo Sacramento, O Olho e a Faca é um drama que mescla questões internas do personagem Roberto, interpretado por Rodrigo Lombardi, com uma atmosfera contemplativa e isolada passada parte em terra, parte no mar, em uma plataforma de petróleo. Tal camada reflexiva imposta na vida profissional e pessoal de Roberto trazem à tona diversos problemas, e o filme faz questão de abordar tanto a solidão do protagonista quanto seu autoconhecimento.
O diretor e os atores Roberto Birindelli e Maria Luisa Mendonça conversaram com o AdoroCinema sobre o tom do filme, seus personagens, a experiência de ficar dentro de uma plataforma de petróleo e a mensagem que ele traz. Confira a entrevista abaixo.
AC: Como foi a experiência de filmar na plataforma?
Roberto Birindelli: Foi um mês e meio de preparação para começarmos a filmar lá. É um ambiente claustrofóbico e que é preciso saber exatamente o que fazer a todo o momento. O risco é total. Não se pode nem subir uma escada sem se segurar com as duas mãos porque senão o vento te leva dois andares abaixo. Tivemos que usar steady-cam (câmera fixa) pois ela não parava com o tripé devido a ventania. A cada dia era uma nova programação para filmar e todos da equipe viveram um pouco da vida de petroleiro.
AC: Como você chegou à plataforma de petróleo para a composição do filme? É uma metáfora sobre solidão?
Paulo Sacramento: O filme é sobre uma pessoa meio louca, sujeita a trabalhar de modo diferente das outras pessoas. Eu sou muito ligado com arquitetura, com lugares. Em todos os filmes que eu fiz, por incrível que pareça, surgiu antes o lugar e depois a história. Eu encontrava um lugar, ia para lá e falava: “O que vai acontecer aqui?”. Daí, eu inventei uma história para acontecer. Depois fui fazer O Prisioneiro, e eu falava: “Essa prisão… O que acontece dentro dessa prisão? Quem são essas pessoas?". E neste filme começou um pouco em cima disso, da plataforma de petróleo. Assim como as cadeias na época, eu fiquei: “Gente, mas eu não sei nada sobre isso”; parece que a gente sabe porque todo dia vê na televisão, e era uma época que tinha muito institucional da Petrobrás. Eu passava de helicóptero por cima das plataformas e falava: “Mas e ali dentro? O que se passa aí dentro?”. Daí eu fui atrás de pesquisar, de falar com as pessoas. A bibliografia é zero, é uma coisa muito especializada. Então, eu fui descobrindo através das pessoas. Mas e para entrar nesses lugares? Não consegui entrar de jeito nenhum. É muito mais difícil entrar na plataforma de petróleo e filmá-la do que fazer isso uma cadeia.
AC: Então foi isso que deu uma noção para o personagem do Rodrigo Lombardi, não?
Paulo Sacramento: Tudo foi surgindo disso, dessas pessoas que eu fui conhecendo, de eu ficar sabendo como era o processo, como era ficar lá dentro, como é que era a solidão, como é que era o tipo de pessoa. Comecei a pensar em um personagem que no começo também, para mim, era como como se fosse um Jó. Eu queria que fosse um cara que fosse posto a prova, sabe? Ele vai perder tudo que ele tem. E aí vai mudando, mas é um pouco isso. Ele perde a mulher, ele perde o contato com os filhos, ele perde a casa, ele perde os amigos, ele perde o trabalho.
AC: E a ruptura dele acontece justamente quando ele consegue a promoção no trabalho. Ele começa a se desequilibrar pessoal e profissionalmente também e eu acho isso muito interessante. Paulo, como você criou isso?
Paulo Sacramento: Quando você encontra as contradições é que a história passa a ter mais força. Se fosse uma coisa que deu errado porque simplesmente ele cometeu um erro, seria uma coisa meio óbvia. Mas por que ele saiu do trilho? Eu achei que seria interessante que fosse uma coisa boa, mas que ele não estava preparado. Racionalmente, ele falou: “Vou casar e vou ter um apartamento maravilhoso, vou morar em Higienópolis, vou ter dois filhos”. Só que de repente a vida fala: “Não, agora você vai ser chefe”. E além de ser chefe, ele vai ser manipulado de uma maneira explícita porque provavelmente ele foi manipulado a vida inteira, e agora vai ter que pagar um preço por essa promoção.
AC: Vocês acham que o filme fala mais sobre solidão ou autoconhecimento?
Maria Luisa Mendonça: Para mim, o filme aborda muito essa questão mesmo da ausência, da presença ausente. Eu pensei muito nisso para minha personagem, nessa falta de comunicação e expressão. Eu vendo o resultado eu acho que a história se dá muito por essa falta de se ouvir, de perceber o outro, de ser gentil consigo mesmo também. O que se constrói entre duas pessoas? Eu penso muito nisso. É construir para conectar uma relação.
Paulo Sacramento: São muitas camadas. Acho que, pela primeira vez, é um filme que eu faço que pode ser lido só na primeira camada também. É a história de um petroleiro que tem uma crise e vai resolver essa crise de alguma maneira e ponto. E tem as outras camadas do filme, essas camadas simbólicas. Eu gosto de trabalhar com símbolos também. Para mim, é um filme sobre o olhar, sobre como o personagem não percebe nada do que está acontecendo com a vida dele. Roberto não percebe quando as coisas saem dos trilhos, dessa coisa fácil que ele está acostumado a lidar.
AC: Sim, tudo vai acontecendo e é isso. E o corvo? Ele é um presságio ou um objeto para reflexão, principalmente na cena?
Paulo Sacramento: O corvo é uma das diversões que as pessoas tem que assistir mais de uma vez para ver a partir de que momento elas começam a encontrar o corvo. Tipo “Onde está Wally?”, porque esse corvo vai aparecendo suavemente em uma cena, depois em outra. Ele faz parte dessas minhas referências, seja a citação ao Carlão Reichenbach, que é explícita, que eu vou lá e coloco uma cena de um filme dele. Mas tem coisas que foram colocadas no filme que é o universo onde eu, mais ou menos, vivo. Eu sou um cara que assiste filme o dia inteiro, lê livro, essas coisas assim. Todo filme que eu faço eu gosto de colocar algumas coisas que certas pessoas vão ver e outras pessoas não vão ver, sabe? O que quer dizer aquilo? Eu faço um jogo de quebra-cabeças que é lúdico, tanto para quem faz quanto para quem assiste.
AC: Você acha que o filme é um quebra-cabeças?
Paulo Sacramento: Ele é de certa maneira, porque é você pegar aquelas peças e ver para o quê cada uma daquelas peças serve. Por exemplo, eu nunca fiz um filme em que tantas cenas não foram utilizadas na montagem final. O filme era inteirinho construído, com início, meio e fim. Mas na hora de montar o filme, eu falei: “Tá bom, a história está contada, mas será que é a maneira mais forte? E se eu não contar isso?". Eu acho isso muito mais forte do que ficar contando tudo e a gente chegar ali, todo mundo saber, mas eu acho que todo mundo entende assim também, não é? Pelo menos é o cinema que eu gosto: tentar mostrar que as coisas podem ser feitas de maneiras diferentes. Quando a gente vê uma série da Netflix, por exemplo. Elas são ótimas, mas temos 10 capítulos, cada capítulo dirigido por uma pessoa e tudo parece a mesma coisa. Não é exatamente o que me interessa mais. Cinema autoral é uma coisa que está em baixa hoje em dia, mas que é uma coisa que eu gosto. Nem estou querendo reivindicar que eu tenho o meu cinema específico, até porque a gente filma tão pouco, as coisas demoram tempo para serem feitas que é difícil chegar nisso. Mas eu acho que é importante mostrar para o público que as histórias não nascem prontas, que tudo é uma escolha. E com o cinema é assim, cada um pega um pouco o que quer. É um filme provocativo, ele se finge de normal. E aí de repente o que interessa é outra coisa e isso frustra muita gente. Mas não vejo problema, não quero e não preciso agradar todo mundo, não é um cinema de mercado. Não existe mercado de cinema no Brasil. Mesmo os filmes de mercado são produtos de outras coisas. Acho que isso dá uma certa liberdade para a gente e permite fazer filmes que são tortos, que podem gerar algo nas pessoas.
O Olho e a Faca está em cartaz nos cinemas brasileiros.