Não é surpresa para nenhum fã de Pedro Almodóvar que os filmes do diretor estão repletos de experiências pessoais. Desde Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980), seu primeiro longa-metragem - e mesmo antes disso, com diversos curtas - o espanhol transparece em suas obras a relação forte com a mãe, a homossexualidade, as experiências com drogas e a paixão pelo cenário punk rock de Madri.
Em última instância, pode-se dizer que todo filme carrega um pouco da personalidade do seu criador, o que se torna ainda mais evidente diante de Dor e Glória, drama sobre um diretor de cinema gay, dependente de drogas e que, chegando à velhice, teme que seus melhores filmes ficaram para trás. "O nome do meu personagem é Salvador Mallo, mas todo mundo sabe que, na verdade, ele é Pedro Almodóvar", confessou o ator Antonio Banderas quando recebeu o prêmio de melhor ator no último Festival de Cannes.
Mesmo assim, o cineasta afirma que a obra não é autobiográfica. Ora, quais são os limites do real e da ficção nesta história? Na questão das referências diretas, Banderas usa o corte de cabelo específico do diretor, e veste roupas que pertencem verdadeiramente a Almodóvar. O apartamento onde o protagonista mora está repleto de quadros da coleção pessoal do cineasta, e a história cita o passado de Salvador como músico, o que também corresponde à trajetória dele.
Outras referências constituem meras evocações: Almodóvar nunca dirigiu um filme intitulado "Sabor", como Salvador Mallo, mas o cartaz e a descrição deste projeto evocam as comédias femininas e subversivas dirigidas pelo cineasta, aos moldes de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e Ata-me! (1989).
Da mesma maneira, o espanhol afirma jamais ter usado heroína, como seu personagem, mas assume ter enfrentado a dependência de cocaína. No elenco, a presença de vários atores que o acompanham desde o início da carreira também contribuem à impressão de um filme-síntese, com destaque para Penélope Cruz, Cecilia Roth e Julieta Serrano.
No entanto, muitas passagens são puramente fictícias: a descoberta da paixão gay por um pintor analfabeto aos nove anos de idade, os múltiplos problemas de saúde, algumas passagens específicas envolvendo a mãe. Dor e Glória carrega "muitas coisas que Almodóvar gostaria de confessar sobre a sua relação com a família, com os atores e com a vida em geral", explicou Banderas ao El País. "Algumas coisas precisavam ser ditas, mas ele nunca teve a oportunidade de dizê-las. Por isso, não é uma autobiografia", conclui.
Dor e Glória está em cartaz nos cinemas. Leia a nossa crítica.