Para muitos brasileiros, a Revolução Francesa pode ser apenas uma página dos livros de história. Para o diretor francês Pierre Schoeller, os últimos anos do século XIX, que levaram à queda da Bastilha, representam um momento transformador na nossa sociedade, razão pela qual ele passou anos pesquisando os eventos históricos até desenvolver o roteiro de A Revolução em Paris.
Ao invés de colocar o rei Luís XVI no centro da trama, o filme prefere se concentrar em uma dúzia de personagens do povo, que foram à Assembleia da época protestar contra a miséria na capital francesa e exigir a queda do rei. O elenco impressionante inclui Gaspard Ulliel, Adèle Haenel, Olivier Gourmet, Louis Garrel e Laurent Lafitte.
Schoeller veio ao Brasil para apresentar A Revolução em Paris durante o Festival Varilux de Cinema Francês, que leva dezenas de filmes franceses inéditos a 80 cidades brasileiras. O AdoroCinema conversou com o cineasta de filmes prestigiosos como O Exercício do Poder e Versalhes:
Você retrata um período complexo da História francesa. Que elementos quis priorizar no roteiro?
Pierre Schoeller: Se eu fosse resumir em uma palavra, diria que é a esperança. Em torno da esperança, quis mostrar a coragem, a criação e o coletivo. Não queria transformar os indivíduos em heróis, por isso os personagens são anônimos, e mesmo figuras muito conhecidas na época, como Mirabeau, ficam à margem desta revolução. Este é um filme sobre o sentimento do presente e a força do comprometimento de homens, mulheres e crianças. É isso que acompanhamos durante pouco mais de três anos.
Este período costuma ser contado pela ótica de Luís XVI, mas desta vez ele é retirado do centro da trama.
Pierre Schoeller: Na verdade, os personagens falam sempre em Luís XVI. Ele existe enquanto figura política e enquanto pessoa. As escolhas dele são importantes, mas nem todo mundo sabe que o primeiro projeto da época era o de criar uma monarquia constitucional, e não uma república. Durante a revolução, quase todas as pessoas concordavam – menos os reacionários, que sonham em deixar as coisas como estão – que o objetivo da revolução deveria ser criar uma monarquia constitucional. A posição do rei é central neste projeto político.
Você presta muita atenção à liderança das mulheres.
Pierre Schoeller: Isso é algo muito importante. Para mim, esta era a maneira de criar uma noção de povo. O povo só existe quando você retrata todos os rostos, e as mulheres estão presentes. Na verdade, os historiadores sabem muito bem que as mulheres tiveram um papel decisivo nestas transformações. É triste que hoje, quando se menciona as mulheres da Revolução Francesa – Maria Antonieta, Charlotte Corday, Olympe de Gouges -, isso fique apenas no plano das ideias, e não da ação. Na verdade, elas estiveram presentes na ação revolucionária também.
Era importante que o elenco se parecesse fisicamente com as figuras históricas, que incorporassem gestos e voz destas pessoas?
Pierre Schoeller: O mais importante, para mim, era não mentir sobre as idades. Os revolucionários eram jovens, incluindo raros anciãos. Mas Robespiere, Saint-Juste e outros tinham pouco mais de trinta anos de idade na época. Era importante manter este aspecto. Além disso, eu queria atores capazes de sustentar a carga de diálogos. Como o filme está repleto de políticos e oradores, era preciso que eles fossem capazes de transmitir a paixão e a convicção através das palavras. Talvez Louis Garrel pareça uma escolha curiosa para Robespierre, mas ele possui uma sensibilidade ímpar entre os atores desta geração, conseguindo combinar força e fragilidade. Para mim, era isso que representava Robespierre.
Ao invés de se focar nas grandes cenas de batalha, o filme privilegia o debate de ideias.
Pierre Schoeller: Em alguns momentos, eu tinha a impressão de criar uma ópera, com cenários e imagens marcantes. Para quem transitasse pelas ruas da época, a revolução era algo gigantesco, e era preciso transmitir a impressão de viver um momento excepcional - era preciso criar uma vertigem. Trabalhei o máximo possível com cenários reais, não criamos nada em estúdio. Eu precisava de muita luz sobre os materiais, as texturas, a madeira, e utilizamos quase sempre luz natural. A intenção era transmitir certa sensualidade, que o filme fosse colado às sensações, à pele dos atores. Desta escolha nasceu a ideia de usar as plumas, por exemplo. O filme mistura canções, cenas cotidianas e instantes políticos.
Podemos dizer que este é um novo estudo sobre o Exercício do Poder. O que te fascina no tema?
Pierre Schoeller: Ele também é um estudo sobre nós mesmos! Quando comecei a escrever o roteiro, eu queria inventar histórias que falassem sobre hoje. O cinema possui o potencial de contar o nosso tempo, esta é uma de suas missões. Podemos comentar a nossa época através da força das imagens e das emoções, o que é uma tarefa incrível. Ao passar do texto à direção, percebi que a posição do diretor é muito ligada ao exercício do poder. Isso pode mudar de país em país, mas na França, o diretor costuma ser colocado no topo da pirâmide, é ele quem toma as decisões. Isso me chocou, não pensei que a hierarquia existiria a este ponto. Às vezes isso nem parte do próprio cineasta: os outros membros da equipe te colocam imediatamente nesta posição.
Assim, me tornei sensível a esta questão. A ideia do poder é interessante porque se encontra em todas as relações sociais: dentro de uma família, uma sala de aula, um hospital, um casal... Se começamos a contar histórias sobre o poder, abordamos naturalmente diversas esferas da sociedade. No caso da Revolução Francesa, eu me apaixonei pela possibilidade de casar o poder e a invenção, porque toda revolução é um momento de invenção, de transformação, mesmo que caótica.
Em que medida o filme se mantém fiel aos fatos e datas históricas?
Pierre Schoeller: Eu fiz muita pesquisa por conta própria. Isso leva muito tempo, mas prefiro fazer isso pessoalmente, para não ser dependente do olhar de outros. O mesmo aconteceu com O Exercício do Poder. O meu olhar começa virgem, e aos poucos vou encontrando textos, informações. Costumo verificar muito cada fato, e busco diversas fontes para ter uma investigação segura. Para dirigir, eu preciso ter a certeza de como as coisas realmente aconteceram, mesmo que a história seja misturada a um imaginário coletivo. Eu li vários livros e encontrei diversos historiadores. Em seguida, escolhi quatro ou cinco deles que seguiram fielmente o projeto até o final.
Os diálogos na Assembleia, por exemplo, são exatamente aqueles ditos na época. Três quartos do texto do filme são retirados diretamente dos arquivos. Isso é incrível: mesmo o pesadelo do rei provém de documentos reais que foram encenados. As canções e melodias foram extraídas do período. A Revolução Francesa foi fartamente documentada. Havia jornalistas que escreviam a respeito todos os dias, e os jornais chegavam a ganhar mais de uma edição por dia. Existe muito material a buscar, e isso permite ter a ilusão de viver, hora a hora, o que aconteceu.
Que relações você enxerga entre a política da época e a política contemporânea?
Pierre Schoeller: A coisa mais importante é compreender que a política deve ser viva, deve proporcionar um espaço para debate. Cada vez que escuto, ou que alguém sugere, que existe uma única forma possível de agir em sociedade, isso não pode mais ser chamado de política. Para mim, a política só existe com o debate de ideias, então dizer que a única solução é uma medida de crescimento, por exemplo, constitui um discurso de autoridade, e não uma política. É preciso haver discussão, questionamento. Hoje em dia, devido à evolução das sociedades, das ferramentas de comunicação e da digitalização do mundo, precisamos cada vez mais discutir. Se interrompemos o espaço de debate para instaurar decretos, como se fossem verdades, a política se esgota.
O filme chega aos cinemas para dizer que debater em conjunto não é impossível, efetuar longos processos de transformação não é impossível. Elaborar uma nova política não é impossível, tanto que esses revolucionários o fizeram. Podemos questionar os excessos, a violência e a radicalidade, mas eles só ocorrem devido à resistência contra a revolução. Ela não é inerente à prática revolucionária. Quando o povo vai à Bastilha, é para se defender das tropas do Rei, e não para atacar. Isso muda completamente o sentido das coisas.