No mês de fevereiro, Graças a Deus se tornou um dos filmes mais aclamados e controversos do Festival de Berlim, onde foi premiado com o Grande Prêmio do Júri.
O drama dirigido por François Ozon (O Amante Duplo, 8 Mulheres) aborda a história real do grupo francês La Parole Libérée ("A Palavra Liberada", em francês), formado por dezenas de adultos que foram abusados sexualmente pelo padre Bernard Preynat quando crianças. Juntos, eles compartilham os traumas sofridos e lutam pela condenação de Preynat e do cardeal Barbarin, que acobertou os casos.
Na Berlinale, o AdoroCinema teve a oportunidade de conversar com Denis Ménochet, que interpreta François Debord, uma das vítimas mais eloquentes contra a pedofilia, e com Swann Arlaud, intérprete de Emmanuel Thomassin, rapaz que jamais conseguiu reconstruir sua vida após os abusos.
Arlaud está no Brasil atualmente, apresentando Graças a Deus dentro do Festival Varilux de Cinema Francês. O drama será exibido em 80 cidades brasileiras durante o Varilux, ganhando o circuito comercial em seguida, no dia 20 de junho:
Vocês tiveram algum receio de participar do projeto, em virtude do tema?
Denis Ménochet: Quando você diz sim a um projeto, você precisa ter consciência do assunto. Eu me senti honrado em fazer parte dele, para ser sincero. Muitas pessoas vêm lutando há décadas contra essas instituições poderosas. Nós não estamos apenas ajudando elas, estamos dando um eco a essas vozes ao relatar sua intimidade e seu sofrimento, para que as pessoas possam se identificar. Este gesto pode ajudá-las a iniciar uma conversa, criando uma educação a respeito. Eu não acho que este projeto possa mudar a Igreja, mas ele pode nos alertar sobre a maneira de escutar as crianças.
Conheciam os casos de abuso sexual do padre Preynat antes de trabalharem no filme?
Swann Arlaud: Eu acompanhava as notícias, mas elas são vagas e imprecisas. Claro, se você entrar no site da associação La Parole Libérée, você vai encontrar informação de verdade, além de diversas entrevistas. Este conteúdo vai mais fundo no tema, com certeza. Eu não sabia muito antes, só seguia o que estava acontecendo, e escutava nos noticiários algumas histórias difíceis de ouvir. O filme possibilita que você se aprofunde, descubra o lado humano da história e também o aspecto universal, porque essas coisas acontecem no mundo todo, não só na igreja. Acontece no esporte, acontece nas escolas, nas famílias e em instituições muito poderosas.
Vocês encontraram as pessoas reais que interpretam no filme?
Denis Ménochet: Não, não nos conhecemos antes, só depois das filmagens. Existe muito material acessível no site, vídeos dos protagonistas, já havíamos lido o roteiro, enriquecido parcialmente com nossas próprias palavras. Nós fomos, por exemplo, aos lugares verdadeiros onde viviam estas pessoas. Então, a bateria é a bateria de verdade do protagonista, a mesa de jantar é a mesma mesa em que ele comia, mas a intenção nunca foi imitar: o objetivo era mostrá-los como guerreiros. Na vida real, o meu personagem fala muito devagar, por exemplo, ele explica tudo com muita precisão. Seu eu seguisse à risca, teria sido um filme de três horas e meia, mas não poderia ser tão longo! Se vamos representar guerreiros, precisamos fazê-lo em outra velocidade.
Que aprendizado pessoal retiraram desta experiência?
Swann Arlaud: Eu aprendi a escutar. É o trabalho do ator ser empático com seu personagem, esse é o nosso dever. Precisamos ser capazes de escutar e compreender os sentimentos do outro. Aprendi também que você tem que dar valor ao que seus filhos te falam, é algo que você tem que valorizar. Talvez duas gerações atrás o que as crianças falavam não tinha tanto valor. Mas isso mudou.
Denis Ménochet: Eu aprendi que 1% de toda a população tem inclinações pedófilas, que entre cinco crianças, pelo menos uma foi abusada. A associação La Parole Libérée sozinha não vai nos ajudar, apenas se nós escutarmos e nos comunicarmos. Também aprendi com meu próprio filho que não posso proibi-lo de fazer aulas de piano, por exemplo, com um professor que eu desconheça, mas devo ensinar que ele sempre pode dizer o que pensa e que o corpo só pertence a ele.
De que maneira enxergam Deus e a espiritualidade dentro deste contexto?
Denis Ménochet: Na verdade, eu acredito na ciência e em tudo que as pessoas descobrem na ciência, especialmente sobre o espaço, galáxias e outros planetas. Então como eu acredito nesse Deus? Se a ética desaparecesse do mundo, a ciência faria as mesmas descobertas, as mesmas equações. A física e a biologia seriam as mesmas. Mas a religião não seria a mesma, ela teria outro formato porque alguém disse que as coisas devem ser de tal forma.
Swann Arlaud: Acredito que seres humanos sempre criaram religiões em todos os lugares. É um aspecto da nossa sociedade: se juntar em oração, acreditar em coisas. Alguns atores dizem que religião é papo furado, mas muitas pessoas dedicam suas vidas a alguma prática religiosa e fazem muitas coisas boas. Então, você não pode dizer que Deus equivale à religião, mas este é um aspecto do comportamento humano e nós precisamos respeitar.
Denis Ménochet: Eu fui criado em uma família contrária à Igreja, porque meu avô cresceu com os jesuítas e tinha péssimas memórias desta experiência. Eu não acredito em religiões, não consigo imaginar que Deus veio em certo ponto da humanidade e disse: “Faça isso!”. Mesmo assim, eu tenho minhas próprias crenças. Isso é algo privado, mas provavelmente me consideraria agnóstico. Dito isso, acho que as religiões nunca fizeram bem de verdade para a humanidade. Talvez uma parte do budismo, mas não tenho certeza. Eu tenho crenças pessoais, mas sou muito firme quanto às religiões.
Acreditam que o filme tenha a vocação, ou a potência, para transformar o ponto de vista do espectador sobre a religião?
Denis Ménochet: É um filme que ataca mais a instituição da Igreja Católica. As pessoas perguntam: “Você acredita em Deus?”, mas a pergunta certa seria: “Você acredita na Igreja Católica?”. Acredito que o fiel fervoroso da Igreja não vai mudar sua opinião em relação aos dogmas, porque ele acredita profundamente nisso. Muitos podem não duvidar de Deus, mas talvez duvidem da Instituição.
Swann Arlaud: Conscientemente, sei que se trata de um filme político no sentido de fazer parte de uma História presente. Como ator, você sabe que vai participar desta representação política da História, não como ativista, mas pelo fato de fornecer uma voz, um outro tipo de voz.
Denis Ménochet: É uma decisão emocional. Eu nunca tive uma razão política quando aceitei fazer o filme, mas o filme é político.
Como se deu o contato com François Ozon para construir os personagens?
Denis Ménochet: Eu já havia trabalhado antes com o François [em Dentro da Casa], assim como o Melvil Poupaud, que interpreta Alexandre, tinha trabalhado com ele [em O Tempo que Resta e O Refúgio]. Então foi uma relação de familiaridade.
Swann Arlaud: Denis conheceu o François primeiro, e ele falou comigo a respeito. Para mim, foi a primeira vez. Na verdade, eu tenho uma certa fragilidade que nem eu conhecia, mas François trouxe isso à tona. Por trás da superfície, eu sou frágil e a magia da câmera torna visíveis coisas que você achava que eram invisíveis. Foi assim com Melvil e Denis também. François é um homem muito sensível, apesar de ser um cara forte. Melvil também é sensível, mas não mostra muito. Então, François foi muito inteligente em ter nos colocado juntos. Nós construímos nossos personagens a partir do que já estava em nós. François foi inteligente em formar esse trio.