A 72º edição do Festival de Cannes despertou reações mistas quando anunciou a lista de filmes selecionados. Para alguns, a inclusão de vários nomes consagrados (Almodóvar, Malick, Dardenne, Loach, Tarantino, Bellocchio, Desplechin) constituía a prova de uma competição forte. Para outros, este era o sinal de que o festival não se abria à renovação.
Terminada a exibição dos 21 filmes em competição, e de todas as mostras paralelas, é possível fazer uma breve avaliação às vésperas do anúncio dos vencedores. Foi muito bom perceber alguns cineastas famosos se lançarem em registros sensivelmente diferentes daqueles em que os conhecemos - Pedro Almodóvar se mostrou mais contido com Dor e Glória, Ken Loach apostou num caminho mais incisivo e fatalista com Sorry We Missed You, Terrence Malick investou numa estrutura mais linear para a biografia A Hidden Life.
No entanto, como se pode esperar em todos os anos, alguns dos veteranos decepcionaram. Quentin Tarantino ofereceu um filme fraco para os seus padrões, com Era uma Vez... em Hollywood, e Arnaud Desplechin trouxe um dos títulos menos interessantes da mostra competitiva com Oh, Mercy!, registro edulcorado da atividade policial em bairros perigosos.
Mas nenhuma presença foi mais contestada que a de Abdellatif Kechiche com Mektoub My Love: Intermezzo, uma coleção de 3h30 de belas mulheres rebolando numa festa enquanto a câmera filma seus corpos. Cannes precisa se decidir: ou abraça um discurso progressista, com a organização das palestras Women in Motion, ou inclui uma obra fetichista na busca pela Palma de Ouro.
Além disso, de pouco importa o diretor artístico Thierry Frémaux ressaltar sua atenção ao cinema feito por mulheres se seleciona tão poucas obras de diretoras no festival. Em 2019, foram apenas quatro filmes dirigidos por cineastas mulheres, contra dezessete filmes de cineastas homens. Atlantique, de Mati Diop, Little Joe, de Jessica Hausner, Sibyl, de Justine Triet e Portrait of a Lady on Fire, de Céline Sciamma fizeram bonito dentro da seleção - muitos jornalistas inclusive apostam neste último para os prêmios principais.
No entanto, outros títulos poderiam ser incluídos. A mostra Um Certo Olhar, a segunda mais importante de Cannes, continha nada menos que sete diretoras mulheres, enquanto obras aclamadas da Quinzena dos Realizadores e da Semana da Crítica também poderiam ter chamado a atenção de Frémaux e sua equipe. Neste sentido, o Festival de Berlim sai na frente, chegando muito mais perto de uma paridade e se abrindo a cinematografias do mundo inteiro.
A propósito dos cinemas periféricos, a 72ª edição de Cannes demonstrou pouca disposição em olhar para fora da Europa e dos Estados Unidos: o brasileiro Bacurau foi o único representante da América do Sul na busca pela Palma de Ouro, enquanto o franco-senegalês Atlantique representou todo o continente africano e o franco-palestino It Must Be Heaven foi o único selecionado do Oriente Médio. China, Coreia do Sul e Japão costumam aparecer em grande número, mas este ano tiveram apenas Parasite e The Wild Goose Lake na competição.
Fora da mostra competitiva, o cinema brasileiro teve ótima participação: Bacurau recebeu muitos aplausos e despertou alguns dos debates mais calorosos do ano; o belíssimo A Vida Invisível de Eurídice Gusmão venceu o prêmio principal da mostra Um Certo Olhar, Sem Seu Sangue apresentou o mundo a abordagem bastante pessoal da jovem Alice Furtado, e Indianara levou a vida de uma ativista transexual às telas francesas. O Traidor, coprodução com a Itália, dividiu opiniões, mas serviu para comprovar o potencial da indústria brasileira através de parcerias internacionais.
No que diz respeito à temática, o ano foi particularmente bem servido em comédias (Os Mortos Não Morrem, It Must Be Heaven, Parasite, Frankie, Era uma Vez... em Hollywood), histórias sobre o próprio cinema (Dor e Glória, Sibyl, Era uma Vez... em Hollywood, Matthias e Maxime, It Must Be Heaven) e histórias de zumbis (Os Mortos Não Morrem, Atlantique, Little Joe, Sem Seu Sangue). Poucos filmes atacaram a política contemporânea com a mesma ferocidade de Bacurau e Les Misérables - de modo geral, os títulos selecionados privilegiaram abordagens lúdicas.
Enquanto se fala muito em diretores, esta foi uma edição surpreendente em termos de trabalhos de montagem. Alguns filmes se esticaram em longas durações para provocar experiências perturbadoras e romper com expectativas (Mektoub My Love: Intermezzo, Era uma Vez... em Hollywood), outros fragmentaram a narrativa para situar o espectador numa posição ativa, precisando juntar as peças (The Whistlers, Sibyl, Atlantique, Matthias e Maxime) e alguns privilegiaram o ritmo frenético acima de tudo (Parasite, Les Misérables, For Sama). A seleção apresentou um painel variado de formas de conceber o ritmo e o agenciamento de imagens.
Por fim, o Festival de Cannes 2019 ostentou belos discursos sobre a percepção das transformações mundiais (de representatividade, de linguagem cinematográfica), no entanto este cuidado ainda precisa ser visto de modo mais profundo nos filmes selecionados. É através das obras escolhidas que o evento demonstra a sua visão do mundo, ditando tendências e fazendo novas apostas artísticas. Cannes tem apresentado obras de qualidade notável, porém ainda precisa se abrir muito mais às produções arriscadas dos quatro cantos do mundo.
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