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    Mormaço: Atrizes comentam a "poesia absurda" do filme que mistura drama social e suspense fantástico (Exclusivo)

    Marina Provenzzano e Sandra Maria Teixeira falam de resistência e transformação.

    A partir desta quinta-feira, 9 de maio, entra em cartaz uma interessante reflexão sobre as políticas sociais no país através do filme Mormaço. A diretora Marina Meliande aborda o período pré-Olimpíadas no Rio de Janeiro, quando os moradores da Vila Autódromo foram despejados para a construção de estádios e estacionamentos.

    Na trama, Ana (Marina Provenzzano) é uma advogada e ativista que defende os habitantes, incluindo Domingas (Sandra Maria Teixeira), contra as medidas do governo. Conforme as remoções se intensificam, Ana começa a descobrir estranhas manchas pelo corpo que os médicos são incapazes de diagnosticar. À medida que a cidade se transforma, Ana se transforma também.

    O AdoroCinema conversou com Provenzzano e Teixeira sobre a curiosa mistura entre drama social e suspense fantástico, que foi destaque no último Festival de Gramado:

    De que diferentes maneiras estas mulheres enfrentam o sistema?

    Sandra Maria Teixeira: A minha personagem representa o enfrentamento total. Eu me oponho a um sistema que nega à população mais pobre direitos básicos como a moradia. No âmbito geral, todos os direitos são negados a essa população: educação, boa alimentação... Então a minha personagem está em enfrentamento direto com o sistema porque está sendo negado a ela, e à população à qual ela pertence, o direito de ter um local para morar com dignidade.

    Marina Provenzzano: Isso também se mistura com a minha percepção, porque esse processo foi muito transformador. Esta é uma equipe de mulheres, principalmente. Então conheci todas essas mulheres da resistência. A Ana se encontra na tentativa de enfrentamento das instituições, tendo que lidar com homens que a tratam de forma meio paternalista. Apesar das diferenças sociais, a Ana também é forçada a sair do lugar que ocupa. O que vai acontecendo com a Ana é um processo, um desejo de resistência. Quando o Estado começa a tratar as pessoas como coisas, como uma parede para derrubar e passar por cima, você se metamorfoseia e pensa: “Vou ficar aqui. Se quiser derrubar a minha casa, vai ter que me derrubar junto". 

    O filme chega aos cinemas alguns anos após as Olimpíadas. Como percebem o legado olímpico?

    Sandra Maria Teixeira: A ideia de legado promovida pela prefeitura é surreal e absurda. O dito legado atende a uma pequena parcela da sociedade, porque a maioria foi despejada, roubada para que esse legado atendesse à pequena minoria. Filmes como Mormaço evidenciam os bastidores da construção da cidade, além da rede de apoio formada através de pessoas como Marina Meliande. Ela se dispôs a dar visibilidade a questões que a grande mídia não divulga, ou então deturpa. Do meu ponto de vista, os verdadeiros legados são as redes de apoio. 

    Marina Provenzzano: Estou muito feliz que o filme esteja chegando ao cinema neste momento, porque de 2016 para cá tem ocorrido um processo de desmonte do país. Nós fomos à Vila Autódromo outro dia e aquilo que era um bairro virou um estacionamento com grades: é muito violento, quase uma alegoria do processo do desmonte. Quando apresentamos o filme pela primeira vez no Festival de Roterdã, eu ficava pensando qual seria a reação dos europeus. Será que eles achariam que essa invasão da polícia faz parte da fantasia? Na verdade, a entrada dos policiais na realidade foi ainda mais violenta. Fico torcendo para que as pessoas assistam ao filme e, a partir desta experiência, nasça um desejo de resistência.

    De que maneira Marina Meliande trabalhou com o elenco composto tanto por atores profissionais quanto por moradores da Vila Autódromo?

    Sandra Maria Teixeira: Eu já tinha feito alguns trabalhos de teatro, mas esta foi a primeira vez no cinema. Para mim foi uma experiência incrível, maravilhosa e transformadora. Eu tive a oportunidade de observar a relação dela com toda a equipe: é um trabalho feito com muito respeito, carinho e amor. Em alguns momentos, é claro que ela se estressa, mas é uma pessoa com uma integridade muito grande. Então ela respeita essa relação humana e a emoção de cada profissional da equipe. Sou fã da Marina.

    Marina Provenzzano: A Marina gosta do teatro pós-dramático, vamos chamar assim. Ela sempre opta pelo registro mais realista, naturalista. Inclusive, as diferenças de experiências e de estilos são desejadas por ela. Por exemplo, em uma cena, a Natália está gritando no meio da demolição enquanto perde a sua casa, e a Sandra tem uma vivência pessoal naquele espaço, porque viveu de fato na Vila Autódromo. A Marina conduzia estas cenas de modo muito respeitoso, para garantir que todo mundo compreendesse os objetivos de cada cena, para saber como se portar naquela situação. Acredito que nunca houve a intenção de obter o mesmo registro de todo mundo: a ideia era trabalhar com as diferenças mesmo.

    Como interpretam a doença misteriosa de Ana?

    Sandra Maria Teixeira: Para mim, é de uma poesia absurda. Quando eu li o roteiro isso foi o que mais me encantou, o que mais me impressionou. Quando você está tratando de uma situação onde as pessoas estão perdendo suas casas, a Mariana materializa esse problema no corpo da personagem. Pensei: “Gente, de onde ela tirou isso?”, mas é algo muito representativo porque quando você tem sua casa retirada de forma bruta, violenta e forçada, você tira daquelas pessoas toda uma história de vida, laços familiares, laços afetivos, toda uma estrutura. Ou seja, você destrói aquela pessoa, que de repente se vê obrigada a se refazer em outro universo ao qual ela não pertence. Isso interfere em muitos âmbitos na vida da pessoa, e o filme poetizou esse problema de maneira impressionante.

    Marina Provenzzano: É poético para mim, e também alegórico. A ideia é que a doença funcione como um símbolo aberto sobre esse momento do Brasil. É a sensação do siri cozinhando em panela quente: o problema surge, você sabe que tem alguma coisa errada mas pensa que depois resolve, depois você vê. Então a coisa vai aumentando, incomodando mais, mas a vida segue. Em algum momento, a coisa te engole. Quando é que a gente deve se desesperar? São tantas atrocidades acontecendo todos os dias que não existe mais o estopim, você não diz mais: “Agora chega”. A gente conversava muito com a equipe sobre o significado desta mancha na pele que vai crescendo, e todo mundo tinha alguma coisa para dizer. Para a Val, nossa técnica de edição, esta era uma espécie de casulo, significando que depois a Ana se transformaria em outra coisa. Esta também é uma alegoria sobre a necessidade de se reinventar para resistir de alguma forma.

    Sandra Maria Teixeira: A gente vê isso muito claramente com os moradores removidos. Apenas vinte famílias conseguiram permanecer naquele território. Cerca de 500 famílias foram removidas, então quando essas famílias retornam hoje naquele território, a gente vê a emoção, e tem a noção exata do que foi retirado dessas pessoas, que é sua vida, a memória afetiva. Essas pessoas olham para o espaço e dizem: “Aqui era a parede, aqui era a cozinha, aqui era meu quintal”. Então quando esse corpo se transforma, se recusando a ceder às pressões, a gente está falando de uma vida.

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