Louvre, Inhotim, Guggenheim de Veneza. Estes são apenas alguns dos museus mais prestigiados do mundo que já exibiram as obras monstruosas e infernais de Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão, o Tunga. Falecido recentemente, o artista plástico extrapolou as fronteiras da arte brasileira e atingiu um status "além-nações", como explica o diretor Miguel de Almeida, responsável por Tunga, o Esquecimento das Paixões, cinebiografia do primeiro contemporâneo a levar seu trabalho ao Louvre.
Em entrevista exclusiva ao AdoroCinema por ocasião do lançamento do ousado projeto, mais próximo da videoarte do que do cinema comercial, de Almeida falou sobre a gênese da produção, marcada por sua amizade pessoal com Tunga; suas influências literárias na acelerada montagem do longa; e também, é claro, sobre a importância do biografado — confira:
Pergunta: Como foi o seu primeiro contato com o Tunga e como surgiu o projeto do documentário?
Resposta: É anterior ao Tunga, eu era amigo do Gerardo Mello Mourão, pai dele [...] O Tunga era quase 10 anos mais velho do que eu. Eu já era amigo do Gerardo e aí me tornei amigo do Tunga, foi uma coisa passada de uma geração para outra. Nessa época, eu já escrevia na Folha de São Paulo sobre artes visuais e o Tunga estava começando o seu trabalho. Acompanhei o trabalho dele do começo, ainda que não do princípio total [...] Nos últimos anos, eu e o Tunga começamos a pensar em fazer um projeto de um misto de documentário e ficção, um documentário falso.
A ideia era acompanhar um artista, vivido pelo Tunga, que construiria uma obra, e nós registraríamos o processo dessa construção criativa. Esse processo iria misturar um pouco de realidade e muito de ficção [...] Essa era a ideia inicial. Escrevemos tudo, arrumamos o dinheiro e o Tunga ficou doente. Esperamos alguns meses, pelo tratamento do Tunga, para ver se ele poderia fazer parte do projeto. Mas, infelizmente, não deu. No fim do tratamento do Tunga, ele falou para eu focar e fazer o plano B. E o plano B é exatamente o que está no ar. O plano B era justamente juntar Gerardo e Tunga dentro de um processo criativo no Brasil moderno. Era isso.
P: O Esquecimento das Paixões remete bastante à videoarte por ser um documentário bastante sensorial, que traz uma trilha sonora rock and roll, psicodélica e tropicalista. O que você vê de rockstar no Tunga?
R: A música que abre o filme é "Aquarela do Brasil" em uma gravação do Made in Brazil, um famoso conjunto de rock dos anos 70 e 80 de São Paulo. É uma versão lindíssima de "Aquarela do Brasil" [...] É um rock and roll paulistano, da Pompeia, cantando "Aquarela do Brasil", uma exaltação do Ary Barroso ao Brasil, feita nos anos 40, que se tornou um dos emblemas da identidade brasileira, e o Tunga estava além disso tudo. Ele era um artista além-nações, além-Brasil. Ele era pós-noções. A trilha sonora também é assim. Não estávamos interessados em criar uma trilha ligada à chamada realidade brasileira. Queríamos fazer uma trilha sonora que trouxesse um espírito lúdico [...] Independe de nações ou de épocas, tanto que o filme chama-se O Esquecimento das Paixões, que é um conceito de Epicuro, o filósofo e poeta romano.
P: A montagem do filme, de certa forma, espelha o processo criativo do Tunga, de sua potência e fragmentação. Essa era sua intenção?
R: A conversa e as obras do Tunga são sempre construídas através de um outro tipo de lógica. Não é uma lógica da racionalidade, mas da percepção. É algo cinético da criação. Essa é a minha interpretação [...] Há uma lógica lúdica. São pensamentos que vão sendo construídos a partir de diferentes percepções, todas cinéticas. Os olhos veem outras coisas, os ouvidos captam diferentes fontes e o pensamento está em outro território. É uma junção cinética dos sentidos. E também a intuição. Não podemos esquecer que a intuição é um dos nossos sentidos, pouco utilizada. A intuição era a coisa do Tunga. Existem obras do Tunga que trazem intuições do que o Brasil viria a passar, do que viria a acontecer no mundo.
P: Além do próprio Tunga, houve alguma outra influência na montagem, principalmente em relação ao choque das imagens com o ambiente sonoro?
R: A influência da montagem veio de dois poetas, E.E. Cummings e Stéphane Mallarmé. Queria fazer uma colagem, trazer recortes. E há um terceiro, óbvio, William Burroughs, o poeta-escritor beatnik. Então, é basicamente a literatura que influencia muito a montagem. Ela é uma construção a partir do processo cinético que estes três autores aplicam na produção de suas obras. É exatamente a maneira como vejo a obra do Tunga. [...] Faço uma colagem entre diferentes momentos do filme, não necessariamente ligado à imagem ou ao raciocínio inicial. O Cummings e o Burroughs faziam muito isso: pegar o conteúdo original, por assim dizer, para fazer uma nova construção.
Saio dessa realidade, da intenção inicial, para chegar ao resultado que quero: ou seja, construir a narrativa do que poderiam ser estes personagens, tanto o Gerardo quanto o Tunga [...] Não vejo O Esquecimento das Paixões como um documentário jornalístico, de informação, no sentido direto. Esta é uma interpretação do diretor Miguel de Almeida sobre o que era e o que poderia ser o tecido dos personagens, Gerardo e Tunga. O filme não está necessariamente ligado à realidade, não é factual, é uma interpretação [...] Não é um documentário jornalístico. Se pudéssemos dizer que é um documentário ficcional, seria isso.
Não sei se consegui, mas minha intenção era fazer um filme no qual o espectador não precisasse saber quem é o Tunga. Não é um filme para iniciados em artes visuais, iniciados em poesia ou política brasileira. É uma narrativa, solta. Você vê o filme e se delicia com as imagens, com as histórias contadas, com o sabor das frases. E, visualmente, com as imagens. "Eu sempre gostei de bagunça", o Tunga dizia e é isso, o filme que a gente oferece é uma bagunça. É isso.
Tunga, o Esquecimento das Paixões está em cartaz.