A promessa era grande, mas o público que lotou a Grande Sala da Cidade das Artes, uma das maiores casas de espetáculos do Rio de Janeiro, correspondeu às expectativas. Afinal de contas, o segundo dia do Rio2C 2019 começou com força total, inaugurando os trabalhos com dois dos nomes mais aguardados do evento: o astro Wagner Moura e Ted Sarandos, diretor de conteúdo da Netflix. E, apesar de curta, a conversa guardava um anúncio mais do que especial: a gigante do streaming investirá pesado no Brasil, produzindo mais 30 conteúdos originais, entre filmes, documentários e séries, por aqui nos próximos anos.
Ainda que seja uma evolução importante e capital, a mesma é encarada com muita naturalidade pelo produtor, que enxerga a relação entre o Brasil e a Netflix como uma verdadeira história de amor: “Este é só o começo [...] Esta sala enorme e lotada vai te dizer a importância do Brasil para a Netflix. Este é um dos maiores centros criativos do mundo, e sinto que a conexão emocional que os brasileiros têm com a Netflix é muito forte [...] A ideia de contar grandes histórias brasileiras, fazer grandes filmes, para o mundo”, finalizou Sarandos, ao ser questionado por Moura acerca do interesse da companhia por nosso país.
O executivo, que ainda aproveitou a ocasião para ressaltar que a Netflix veio para ficar e se estabelecer ainda mais no Brasil, elogiou bastante alguns parceiros brasileiros da companhia californiana, não poupando palavras para enaltecer as atrizes Larissa Manoela e Maísa Silva; a autora Thalita Rebouças; o cineasta Fernando Meirelles; e, é claro, o próprio Moura — que é “maior que Tom Cruise”, segundo Sarandos —, estrela que se prepara para lançar mais uma empreitada conjunta com a gigante do streaming após o enorme êxito de Narcos: Sérgio, cinebiografia do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello.
Tido por muitos como herdeiro do cargo de Secretário Geral da ONU, por conta de sua ampla experiência em gestão de conflitos, Vieira de Mello viu sua carreira e sua vida serem encurtadas por uma tragédia: em 2003, quando fazia parte de uma delegação das Nações Unidas no Iraque, o brasileiro foi assassinado, vítima de um atentado terrorista em Bagdá. E por mais que a produção seja internacional, contando com nomes como Ana de Armas (Blade Runner 2049) e Bradley Whitford (Corra!), o projeto rodado pelo documentarista Greg Barker impulsiona aquele que parece ser um dos principais lemas de Sarandos.
"Uma boa história, quando bem contada, funcionará em qualquer lugar", uma sentença que certamente ganhou precedência dentro do vocabulário dos executivos da Netflix a partir do sucesso de seriados como o espanhol La Casa de Papel, o alemão Dark e o prata-da-casa 3%, primeira produção da gigante do streaming no Brasil. Ou seja, após Narcos abrir portas para as séries de idiomas estrangeiros ao público anglófono, a língua vem deixando de ser uma barreira para se tornar mais uma ferramenta, uma das muitas barreiras ultrapassadas pela gigante do streaming no ramo da produção de conteúdos originais.
Antes de lançar House of Cards e Orange is the New Black, a Netflix era uma companhia de streaming que acabara de evoluir a partir de seu estado inicial, o de uma locadora online de DVDs. Portanto, como Sarandos explicou, ele e o restante de sua equipe não tinham necessariamente muita experiência — o que, por outro lado, também queria dizer que também não trabalhavam com modelos pré-estabelecidos e nem tinham conceitos determinados sobre produzir: "Por não sabermos das coisas, pudemos experimentar ideias, e o que acontece é que elas funcionam", divertiu-se Sarandos ao relembrar o período.
"Quando começamos a produzir", prosseguiu o executivo, "descobrimos que muitas séries e muitos filmes são criados a partir de convenções, sabedorias populares, teorias e inverdades [...] A razão pela qual fomos a 19ª companhia a ouvir a proposta de Stranger Things foi porque todas as emissoras tradicionais acreditavam que você não podia fazer uma série para adultos estrelada por crianças. O que não é verdade. Então, muito do que acontece na televisão e no cinema é que as tomadas de decisão são baseadas em coisas que podiam ser verdade há 50 anos, mas não são mais hoje em dia".
Este espírito inovador da Netflix não é mera coincidência: como Moura apontou, a gigante do streaming tem um pé no ultra-tecnológico Vale do Silício, berço da Google e do Facebook, e outro em Hollywood, o que a transforma em uma companhia como nenhuma outra no mercado. "A grande vantagem de ter suas raízes no universo da tecnologia é que você pode pensar o mundo de uma forma diferente [...] Além disso, a tecnologia pode aprimorar a narrativa, estamos agora nos estágios iniciais das narrativas interativas", comentou Sarandos, citando o recente filme de Black Mirror, Bandersnatch.
Mas apesar de ressaltar que a tecnologia está sempre a serviço da criatividade e das narrativas, e não o contrário, o executivo não deixou de ser questionado pelo astro de Tropa de Elite sobre a utilização dos dados de consumo coletados pela Netflix a partir do histórico de visualizações de seus assinantes. Mas mesmo em épocas onde as redes sociais podem manipular e/ou influenciar diretamente eleições e a política como um todo com base nos dados de seus usuários, Sarandos assegura que o levantamento estatístico somente é empregado em questões de negócios:
“Os dados dos consumidores influenciam muito pouco. O que os dados nos ajudam é a entender o tamanho que um produto pode atingir, a aumentar nossa confiança em relação ao tamanho de nossos investimentos. Mas, fora isso, nenhum dado diz para fazer uma história ao invés de outra, para escolher um ator ao invés de outro, ou algo do tipo. A maior parte dessa tecnologia é utilizada no âmbito dos negócios, mas nada dela é utilizada no âmbito criativo. Usamos a intuição humana, o instinto humano, para saber que histórias as pessoas querem ouvir, que mundos elas querem visitar, em que pessoas elas desejam investir".
Utilizando os dados no âmbito criativo ou não, fato é que o feedback dos usuários é fundamental para que a Netflix mantenha-se no topo da cadeia alimentar do streaming, cada vez mais congestionada pela recente aparição de outras plataformas, como o Amazon Prime, o Hulu e o vindouro Disney+, entre muitos outros competidores da líder da indústria. Mas a cada vez maior quantidade de concorrentes não tira o sono de Sarandos, como brincou Wagner — muito pelo contrário, aliás, argumentou o diretor de conteúdo da gigante do streaming:
“Nós sempre tivemos grandes concorrentes, em todos os lugares que fomos. Imagine que você deseje operar na indústria televisiva no Brasil contra a Globo ou nos Estados Unidos contra a Comcast, contra qualquer conglomerado midiático... Nós sempre tivemos concorrência e isso é bom, a concorrência é boa. É muito boa para os consumidores e faz com que todos tenham que estar no auge [...] O que fazemos é focar ao máximo em nossa comunidade. A competição é algo muito natural e saudável, que também fará a Netflix melhor”, sacramentou Sarandos.