Desde que a Netflix se transformou em um negócio globalmente estabelecido, era apenas uma questão de tempo até que concorrências despontassem para brigar por esta fatia generosa e crescente do mercado. É claro, falamos aqui de uma realidade em que o Hulu e o Prime Video, da Amazon, já existem e conquistam públicos cada vez mais fiéis, mas parece que quem chegou para colocar medo e desequilibrar a balança foram o Mickey Mouse e a maçãzinha. Será que a Disney e a Apple chegam ao streaming para derrubar a hegemonia da Netflix?
Nas últimas semanas, tanto a Apple quanto a Disney divulgaram detalhes de seus serviços de streaming, ambos previstos para irem ao ar — pelo menos nos Estados Unidos — no final deste ano. Os dois ainda compartilham uma semelhança nos nomes: Apple TV+ e Disney+.
Prazer, meu nome é Laysa+.
Apple revela trailer das séries de Reese Witherspoon, Jennifer Aniston, Jason Momoa e outros projetos de seu streamingUma terceira coincidência que ronda os projetos está na forma como as empresas escolheram montar suas estratégias de divulgação. Por meses a fio, as séries dos dois streamings foram anunciadas, envolvendo grandes nomes que vão de Reese Witherspoon e Jennifer Aniston a Steven Spielberg e J.J. Abrams no caso da Apple, passando por títulos do porte de Universo Cinematográfico Marvel, Star Wars, Toy Story e High School Musical no caso da Disney. A ideia é simples: chamar a atenção do público com grandes nomes, mesmo sem que alguém tivesse alguma noção de como seriam (ou serão) os produtos finais.
Paralelamente, minar a Netflix de conteúdos não-originais à medida que a empresa foi se agigantando tornou-se uma tática em expansão. Produtoras começaram a retirar filmes ou séries considerados clássicos atrativos de audiência do catálogo da companhia e isso fez crescer, por exemplo, o Hulu, que garantiu os direitos de alguns dos produtos outrora de sua concorrente, quando ainda não era 60% da Disney. Ao mesmo tempo, como resposta, a empresa de Los Gatos passou a investir mais em conteúdo original.
Em outubro de 2017, Reed Hastings anunciou que o investimento em produções internas chegaria a USD 8 bilhões em 2018. “Nosso futuro se baseia amplamente em conteúdo exclusivo original, que conduz a empolgação em torno da Netflix e a enorme satisfação pública dos nossos assinantes globais, em suas grandes variedades de gostos”, anunciou o CEO à época, pouco antes do boom de séries da Netflix, que se seguiu nos próximos meses.
O resultado é claro: de todos os lançamentos disponíveis no catálogo norte-americano da Netflix, colocados no ar entre janeiro e dezembro de 2018, 51% eram originais e 49% eram programas ou filmes adquiridos de produtoras externas. A informação é da Ampere Analysis (via Deadline).
O que você tem a ganhar com a briga de audiência da Netflix com o mundo (Análise)Para o crítico sênior de TV do The Hollywood Reporter, Tim Goodman, a maior ameaça que a Disney impõe não é para a Netflix, e sim para a Apple. “A Disney sempre soube que tinha algo que a Apple jamais teve, com o que nenhuma quantidade de celebridade, ou vídeos incríveis dirigidos em preto-e-branco recheados de banalidades sobre narrativa poderia competir: uma tonelada de conteúdo. Em comparação, todo o conteúdo. O Calcanhar de Aquiles da Apple é o fato de que ela nunca comprou um estúdio ou uma companhia de produção e nunca herdou um catálogo profundo para popular seu novo serviço.”
É claro que a perspectiva de concorrer com uma empresa do nome e porte de Disney, que tem colecionado estúdios como Thanos colecionou Joias do Infinito, assusta. A troca de farpas com a Netflix, particularmente, começou cedo. Mas, em nome do bom-mocismo, todo mundo afirma que ninguém quer matar ninguém: “Eu, pessoalmente, gosto da Netflix. Eles têm um ótimo produto. Eles se saem extremamente bem no mercado”, disse Kevin Mayer, diretor do setor de estratégia da Disney, em fevereiro do ano passado. “O que estamos fazendo não é uma tentativa de machucar ou matar a Netflix.”
Ainda assim, vieram as retaliações. A Netflix cancelou todas as séries da Marvel — descansem em paz, Demolidor, Jessica Jones, Luke Cage, Punho de Ferro, O Justiceiro e Os Defensores — depois de Ted Sarandos ter garantido que as mesmas seguiriam normalmente. A Netflix também assinou um contrato milionário com Shonda Rhimes, que produzia há anos para a ABC — emissora subsidiária da Disney. Da ABC, inclusive, a Netflix também “roubou” Kenya Barris, criador de black-ish, e Channing Dungey, que foi presidente da emissora de 2016 a 2018 e a primeira mulher negra a ocupar o cargo. Ryan Murphy, inclusive, anunciou que trocaria a Fox pela Netflix logo quando foram oficializadas as negociações para o tradicional grupo ser adquirido pela Disney.
Mas, a curto prazo, a Disney e a Netflix não apresentam perigo imediato uma à outra, ainda que essa disputa pareça mais uma grande briga de egos. Em maio de 2018, a Netflix atingiu um pico em suas ações, chegando a ultrapassar o valor de mercado da Disney em USD 9 bilhões. O fato de o plano de expansão global do Disney+ não ser imediato naturalmente garante uma permanência da hegemonia da Netflix, mas é importante ressaltar que o valor da mensalidade do novo canal é bastante atraente: USD 6,99 por mês, com um pacote anual de USD 69,99. Em comparação, os planos da Netflix variam de USD 9 a USD 16 mensais.
Mas, no cenário atual do mercado do entretenimento, Netflix e Disney são dois sóis com órbitas diferentes. É como tentar escolher entre Rihanna e Beyoncé: vamos continuar amando ambas. Difícil mesmo nessa história é para a Ariana Grande. Que, neste caso, é a Apple.
O que assusta ou deixa o mercado incerto a respeito da expansão dos serviços de streaming é o ineditismo de toda a ação, mas trata-se de uma trajetória que já foi feita com o aumento dos canais de TV a cabo após a explosão da HBO. No início, era possível que as pessoas assinassem apenas os canais específicos que quisessem, mas logo a oferta passou a ser tão grande que surgiram os pacotes de TV por assinatura como hoje conhecemos. Enquanto, na visão corporativista, parece divertido oferecer ao público 8 ou 10 opções diferentes de serviços de streaming, difícil mesmo vai ser convencer o trabalhador a gastar dinheiro assinando tudo isso, voltando ao problema básico da TV por assinatura: muitas vezes, você compra um pacote com 200 canais mas só assiste mesmo dois ou três.
A solução óbvia — que, por mais óbvia que seja, ainda não surgiu — é a assinatura do pacote de streaming. O mais próximo disso que está para existir é um projeto anunciado pela Apple de um produto chamado Apple TV Channels. A interface do TV Channels promete reunir em apenas uma tela vários outros canais de streaming e TV tradicionais, mas a apresentação não menciona a Netflix entrando neste novo investimento, tampouco foram revelados preços. Desta forma, é difícil saber se é algo que vale a pena ou não.
O acerto da Netflix foi ter construído um produto que funciona como um canal de TV, mas que aproveita estratégias das empresas do Vale do Silício e enxerga como sua maior concorrente a internet, e não as telinhas. E, mesmo com outras gigantes virando a esquina e chegando com toda força na rede mundial de computadores, a Netflix conquistou quase 10 milhões de novos assinantes nos primeiros três meses de 2019. Para investir em conteúdo, a empresa tem feito gastos, que incluem inclusive a possível compra do tradicional Egyptian Theatre em Hollywood, o investimento em escritórios locais para a produção de atrações de língua não-inglesa para mercados estrangeiros e um número cada vez maior de animes chegando ao serviço.
Gastando ou não com três, quatro ou dez assinaturas de streaming, quem tem a ganhar com tanta concorrência sempre é a audiência, já que o resumo disso tudo é que, para conquistar destaque — ou fãs —, as empresas precisam buscar melhorar seus conteúdos e garantir competição.