Nos últimos anos, o Festival Internacional de Documentário É Tudo Verdade tem selecionado principalmente obras biográficas, destacando a trajetória de personalidades importantes das artes e da política.
Esta tendência se confirma em 2019, com longas-metragens sobre Astor Piazzolla, Dorival Caymmi, o Grupo Rumo, Niède Guidon, Dag Hammarskjöld, Vladimir Putin, Mikhail Gorbachev, Fela Kuti, Ziva Postec, Marceline Loridan-Ivens etc.
Entre os curtas-metragens brasileiros, o recorte é ainda mais específico. A curadoria privilegiou filmes autobiográficos nos quais os diretores filmam seus pais, seus avós, seus primos, ou falam da impossibilidade de filmá-los devido ao desaparecimento das imagens. São obras sobre o tempo e a memória, sobre o afeto ou ausência do mesmo.
Dos nove curtas-metragens selecionados, cinco se inserem neste grupo. Em comum, utilizam imagens de arquivo, filmes em Super 8 e 16mm, sobreposições e ranhuras da imagem. Cada um privilegia algum recurso específico: Partir, de Sonia Guggisberg, favorece as sobreposições de imagens; A Primeira Foto, de Tiago Pedro, prefere a narração crepuscular, em off; Retratos Sobre o Não Ver, de Erik Gasparetto, recorta os rostos dos biografados para se focar nas peles e partes de corpos; Planeta Fábrica, de Julia Zakia, justapõe imagens do presente e do passado; e Nome de Batismo - Frances, de Tila Chitunda, envereda pelos caminhos mais tradicionais das entrevistas e imagens de arquivo.
Tantos filmes retratam os antepassados sem mostrá-los em imagens que o espectador se vê imerso numa curiosa sessão fantasma, um estudo sobre a representação pela ausência. Por mais que seja importante a curadoria optar por um recorte temático, poderia ser igualmente interessante incluir maior variedade entre os selecionados.
Até pela distância dos documentários biográficos, Vento de Sal trouxe um necessário frescor à seleção. O belíssimo curta-metragem de Anna Azevedo registra o fim do dia de dois pescadores, armazenando seus mariscos antes de irem para casa. É extremamente simples, bem filmado e observado, e muito adequado à potência do formato curto.
Talvez esta concentração no cinema biográfico sirva como ponto de partida para uma importante discussão, não apenas sobre o olhar curatorial do É Tudo Verdade, mas também sobre a nossa produção de curtas e longas-metragens documentais. Em meio a ano politicamente conturbado como este, o que significa nos depararmos com tantos retratos de avôs e avós? O que buscamos resgatar daquela época, e o que a minoria de produções abertamente militantes nos diz sobre este grupo de filmes?
Vale lembrar que, em 2018, o grande vencedor entre os longas-metragens nacionais foi uma obra política contundente: Auto de Resistência, de Natasha Neri e Lula Carvalho, que denunciava os abusos policiais no Rio de Janeiro. Este ano, nos longas brasileiros, a política se encontra diluída em afetos (Cine Marrocos, Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar) e filmada com distanciamento em relação ao presente (Rumo, Soldados da Borracha). Para o bem e para o mal, encontramos menos gritos por justiça do que retratos sociais nos quais a política contemporânea constitui um pano de fundo inevitável.
Leia as nossas críticas do 24º Festival É Tudo Verdade:
Cine Marrocos
Dorival Caymmi - Um Homem de Afetos
Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar
Hungria 2018 - Bastidores da Democracia
Memórias do Grupo OpiniãoMeu Amigo Fela
Niède
O Caso Hammarskjöld
Piazzolla: Os Anos do Tubarão
Soldados da Borracha
Ziva Postec - A Montadora por Trás do Filme Shoah