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    Admirável Mundo Pop: Matrix é mais importante hoje do que foi há 20 anos

    Tudo mudou -- e continua mudando -- depois que tomamos a pílula vermelha com Neo.

    Em 31 de março de 1999, Matrix (ou The Matrix) estreava nos cinemas norte-americanos. 

    O filme das cineastas conhecidas como As Wachowski repercutiu imediatamente. Foi aclamado pela crítica como uma revolução na ficção científica, um respiro criativo no cinema de ação e um dos mais importantes lançamentos daquele 1999 inesquecível. O público abraçou a ousadia e proporocionou quase meio bilhão de dólares nas bilheterias do mundo. Não demorou para a marca se descolar de sua obra original e gerar novos produtos (e sequências dispensáveis), tornando-se um conceito indefectível da cultura pop, gerando memes antes dos memes, ícone do cool e do zen, quase um estilo de vida.

    Vinte anos depois, Matrix merece ter esse status mantido intacto, ou talvez arrecadar uma reputação ainda maior. Uma assistida atualmente confirma um filme muito à frente de seu tempo, uma obra que antecipou padrões estéticos em quase uma década. Isso se deu por sua maneira criativa de contar uma história notável (e cada vez mais possível), como também pelo estilo cinematográfico único que ilustrou com perfeição uma realidade distópica instigante.

    O segredo do carisma de Matrix é saber dosar na informação que fornece ao público, sem subestimar sua inteligência e sendo compreensível o bastante para engajar desde a primeira cena. Não há uma única sequência desperdiçada com planos de contexto ou personagens secundários sem função. Tudo vai direto ao assunto, com urgência, porque não há tempo a perder. Há uma ambientação superficial em um mundo parecido com o nosso e uma questão pertinente ao redor da qual tudo gira: o que é a Matrix? É a mesma pergunta que o público se faz antes mesmo de começar a assistir. E a resposta não demora a surgir.

    É notável como o filme entrega ao que veio em poucos instantes. Entendemos rápido que nem Trinity (Carrie-Anne Moss) nem os Agentes que a perseguem são pessoas "normais". Tudo parece parte de uma conspiração maior do que conseguiríamos compreender, mas as pistas surgem sem economia - inclusive aprendemos logo o nome e status do protagonista da história, o herói-hacker Neo. E quando Trinity salta, flutua no ar e a câmera circula sua pose, os queixos da plateia caem no chão e tudo parece ser possível dali em diante. E é mesmo.

    Reprodução

    Neo, ou Thomas Anderson (Keanu Reeves), sabe que está envolvido em algo grande. Recebe mensagens e telefonemas enigmáticos, é guiado por uma voz sábia que tudo vê e é perseguido sem compreender os motivos. Mas o Sr. Anderson é apenas um homem comum e seus medos são genuínos diante do perigo, seja na forma de um chefe ditador, de agentes do governo implacáveis (idênticos ao chefe) ou antes de quase despencar do alto de um prédio. Nada é mais terrível, porém, do que experimentar o horror de ter a boca lacrada ("De que adianta um telefonena se você não consegue falar?", questiona o terrível Agente Smith de Hugo Weaving com uma de suas muitas frases perfeitas) e de presenciar um inseto mecânico penetrando seu umbigo. É quando ele tem a certeza de que nada do que vê e sente é real - ou será que tudo é real demais?

    O sobrenome Wachowski (Larry e Andy fizeram transição de gênero mais de uma década mais tarde e se tornaram Lana e Lilly) era relativamente desconhecido em Hollywood antes de Matrix - a dupla só tinha uma direção na bagagem, o thriller cult Ligadas pelo Desejo. A Warner hesitou antes de bancar uma ideia tão cara e maluca demais para os moldes da ficção científica convencional, mas acabou cedendo, vislumbrando que a alta aposta poderia dar retorno. Fazendo justiça, quem na época teria coragem de cravar que o resultado daria certo?

    A ousada proposta das Wachowski foi elaborar um espetáculo visual nunca antes visto, amarrando tudo a uma lista de referências e inspirações reconhecíveis, quase uma colcha de retalhos pop: O Mito da Caverna de Platão e ideias de obras de Descartes, Kant, Baudrillard e outros filósofos; conceitos de histórias de Phillip K. Dick e William Gibson; fundamentos do budismo, hinduísmo e diversas religiões; as lutas acrobáticas dos filmes de kung fu de Hong Kong; os tiroteios coreografados típicos da obra de John Woo; o culto a armas pesadas dos longas de Stallone e Schwarzenegger, a estética cyberpunk e a ação desenfreada dos animes Ghost in the Shell e Akira; a vibe apocalíptica da ficção científica oitentista, com pitadas de quadrinhos e videogames. Matrix antecipou o filme de super-herói moderno. Inspirou diretores como Christopher NolanZack Snyder e Quentin Tarantino. E aquele visual todo em preto, e aqueles óculos escuros incríveis? E as cenas maravilhosas com efeito bullet time?

    Todo pequeno detalhe de Matrix foi cirurgicamente concebido para transmitir sua complexa mensagem e oferecer ao espectador a imersão total na experiência. O tom esverdeado e frio do mundo "real" serve ao propósito de conceder ares artificiais a cada cena. "Sabe quando você não sabe se está acordado ou dormindo?", Thomas se questiona antes de seguir o coelho branco. E o público, assim como ele, não sabe se presencia o sonho ou a realidade.

    Quando Neo encara Morpheus (Laurence Fishburne) e se vê diante de uma escolha definitiva, nós não temos outra escolha a não ser engolir a verdade junto com ele. A revelação que vem a seguir é impactante mesmo se presenciada em dias tão cínicos como os de hoje. Ao enfim descobrimos o que de fato é a Matrix, já estamos completamente absorvidos. "É um caminho sem volta", Morpheus atesta. 

    Matrix é mais importante agora do que foi há 20 anos porque sua essência mexe em feridas doloridas com as quais a humanidade ainda hoje prefere não lidar. Sua visão cruel de futuro incomoda porque sentimos que inevitavelmente estamos mais e mais próximos de chegar lá. E se nada do que presenciamos for verdade? E se formos mesmo escravos de nossa própria existência? E se estivermos destinados a esperar por um salvador que nunca vai chegar?

    Ainda hoje, duas décadas depois, Matrix continua nos ajudando a refletir sobre tudo isso. Bendita seja a pílula vermelha.

    Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema e consome cultura pop desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks, de Batman a Pato Donald. Como jornalista, editou produtos de entretenimento como Rolling Stone, IGN Brasil, Herói, EGM e Nintendo World.

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