Neste domingo, 31 de março, um filme bastante interessante chega à HBO: Elogio da Liberdade, documentário dirigido por Bianca Comparato. Para quem se interessa pelo trabalho de Rosiska Darcy de Oliveira, o resultado é um belo apanhado da trajetória da escritora e ativista, incluindo trechos selecionados de seus trabalhos.
Para quem ainda não conhece, vale avisar que o filme vai muito além da biografia pessoal, traçando uma evolução histórica dos movimentos de mulheres no Brasil. As conquistas se tornam ainda mais valiosas em contraste com o rico material de arquivo, contendo entrevistas e programas de televisão machistas de poucas décadas atrás. (Leia a nossa crítica).
Além disso, Elogio da Liberdade resgata a luta de Rosiska contra a ditadura - uma reflexão particularmente importante nesta data em que se relembra os 55 anos do golpe militar. O AdoroCinema teve a oportunidade valiosa de conversar com Rosiska e Bianca sobre o projeto:
O documentário mostra diversas entrevistas de Rosiska com jornalistas machistas ou preconceituosos. Qual é o peso de fazer um longa-metragem sobre a sua trajetória e conceder mais uma longa entrevista?
Rosiska Darcy de Oliveira: Para ser sincera, eu nunca me importei muito quando as pessoas eram preconceituosas comigo em entrevistas, porque elas estavam refletindo justamente uma época, uma formação. Eu sempre lidei com isso com uma certa tranquilidade e procurei, justamente, desfazer preconceitos, desfazer as reações negativas. Era esse o meu objetivo quando concedia as entrevistas porque eu sabia que isso ia bater na casa de pessoas que também tinham preconceitos, que não eram diferentes.
Esse filme foi diferente, porque eu já conhecia a Bianca. A minha ideia era dialogar com uma nova geração para, de certa maneira, assegurar a essa nova geração que ela não está sozinha, que ela foi sucedida por uma geração que lutou bastante para conquistar a liberdade. Então, a ideia era fazer o “Elogio da Liberdade”. O que a gente queria fazer é passar para uma geração o quanto a liberdade é importante e o quanto sem ela você não consegue ser feliz. Então, era muito diferente de dar uma entrevista para uma pessoa que não tinha preparo.
As suas ideias no filme são muito coerentes, desde a sua formação intelectual até os tempos mais recentes. Você diria que a sua concepção do feminismo mudou com o tempo?
Rosiska Darcy de Oliveira: Não, até porque eu não tinha uma concepção do feminismo. O feminismo para mim foi uma vivência, algo que fui vivendo e aprendendo. Uma primeira divergência que eu percebi é que o feminismo não deveria imitar os homens. A ideia não era me tornar como eles para agradar, para dizer que eu era capaz de fazer as mesmas coisas - isso significaria impedir que a sociedade me recebesse como a mulher que eu sou. Foi isso que gerou o livro “Elogio da Diferença”.
Eu entendo que a igualdade seja o reconhecimento das diferenças sem hierarquia, porque eu tive uma infância à base de hierarquia. Essa ideia prosperou muito no meio das mulheres, só que hoje as mulheres se colocam como as mulheres que são, e não querem mais adotar o padrão masculino como se este fosse o destino de toda a humanidade. Então, nesse sentido foi uma concepção, mas foi também através de uma vivência, não foi um trabalho racional. Ele se tornou racional na medida que escrevi “Elogio da Diferença”, que já foi um livro mais elaborado.
Bianca Comparato: Na verdade, a história é sobre a Rosiska e as referências dela. Não é um filme sobre a Marielle Franco e nem sobre a Simone de Beauvoir, mas sobre uma menina que nasceu onde a Rosiska nasceu, com a família dela, na sociedade que ela nasceu, e se tornou a mulher que ela é: escritora, uma grande voz no movimento das mulheres, uma mulher que lutou pela liberdade. A ideia era mostrar o que rodeou a vida dela, por isso o filme tem essa narrativa linear que vai da infância até o presente. Tudo o que aparece de material de pesquisa é o que rodeou a vida dela, é um texto histórico. Começa com um encontro de amigas, mas acaba tomando uma proporção política.
Eu queria que este filme começasse de forma muito íntima, mas que fosse tomando o mundo. Então, acredito que o movimento das mulheres hoje adquiriu uma proporção muito maior: é um movimento espalhado, de sociedade mesmo. Ele acontece a toda hora, e finalmente está atingindo as estruturas. O filme até fala sobre isso, mas na verdade é um filme focado na Rosiska, incluindo o contexto histórico que permeia a vida dela.
Por que você decidiu se colocar em cena, Bianca, inclusive dirigindo Rosiska?
Bianca Comparato: Porque eu acho que tem uma camada do filme que é o encontro de gerações, com duas mulheres de gerações diferentes conversando. Era importante ressaltar essa diferença. A geração da Rosiska tinha algo a dizer para a minha, e eu venho dizer às gerações mais novas que a luta continua, que a gente não está sozinho.
Eu nem tinha pensado muito em aparecer no filme, na verdade. Essa ideia não existia a princípio. Isso veio muito na ilha de edição, que era exatamente para essa camada de conversa íntima, com o encontro de duas mulheres de gerações distintas se abraçando e continuando a luta juntas. Era essa simbologia que eu buscava ao me colocar no filme.
Como foi feita a seleção dos textos abordados, e porque decidiram narrá-los off?
Rosiska Darcy de Oliveira: A seleção foi a partir das questões que eu trazia na entrevista. Eu me dei conta de que algumas dessas coisas refletiam os textos que escrevi em diferentes momentos da minha vida. Por exemplo, a metáfora dos castelos de areia na verdade remete a uma crônica que eu escrevi, que está em um dos meus livros chamada “Castelos”.
Os outros textos foram escolhidos em função da entrevista, porque mostravam de que maneira aqueles temas me habitam. A minha obra como escritora é profundamente marcada pela mente feminista. Quase todos os escritores são assim, mas no meu caso, a fusão entre a vida e a obra é muito grande. Isso fortaleceu a seleção que nós fizemos dos textos.
O filme está repleto de filtros na imagem, que vão do colorido ao preto e branco, passando pela textura da película... Como nasceu a ideia destas intervenções?
Bianca Comparato: Eu sempre me incomodei com o fato de que o material de arquivo tinha muitos formatos: televisão, digital, película, Super 8 digitalizado... Essa foi uma tentativa estética de trazer uma unidade para o filme. Foi uma questão que eu discutia muito o nosso colorista e a nossa finalizadora. A gente optou por mudar imagens a olho nu, a cor dos personagens mesmo nos trechos que eram em Super 8, por representarem esta camada da memória.
Queria que essa interferência acontecesse visualmente para trazer ao espectador a sensação da temporalidade do filme porque, afinal, se trata de uma mulher contando a sua história, contando o passado e pensando sobre o futuro. Então, eu queria que as imagens pudessem traduzir aquilo de uma maneira cinematográfica, e foi através da cor a gente poderia fazer isso. Eu sentia que as imagens digitais eram muito duras quando elas entravam no corte pela primeira vez. Por isso, reprojetei o filme inteiro para que o conjunto tivesse a mesma textura. Foi como uma colagem.