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    Confronto ou conciliação: como os filmes de Hollywood lidam com o racismo (Opinião)

    Sobre Green Book, Histórias Cruzadas, Estrelas Além do Tempo, Corra!, Infiltrado na Klan... (Cuidado com os spoilers!)

    Você deve ter percebido, pela reação na mídia e nas redes sociais, que a vitória de Green Book - O Guia no Oscar não agradou a todo mundo. Spike Lee, diretor de Infiltrado na Klan, afirmou claramente que se tratava de uma "decisão ruim", enquanto Chadwick Boseman, o Pantera Negra, não escondeu sua decepção com o vencedor. Na imprensa, Indiewire e Los Angeles Times publicaram artigos simultâneos, afirmando se tratar do pior vencedor do Oscar desde Crash (2004).

    No entanto, a comédia dramática dirigida por Peter Farrelly conquistou a maioria dos votos da Academia, além de vencer o Globo de Ouro e levar o prêmio principal do Festival de Toronto, onde o troféu é escolhido pelo público. Ao mesmo tempo, representou um sucesso comercial, arrecadando US$145 milhões para os custos de US$23 milhões, modestos para a média da indústria. Pode-se supor que o filme foi aprovado por um número considerável de espectadores e profissionais de cinema.

    Então por que Green Book dividiu tanto as reações? Se o filme se posiciona claramente contra o racismo, por que foi considerado retrógrado, e rejeitado por tantos artistas negros? Talvez a resposta se encontre menos nas boas intenções do que em sua abordagem. Em outras palavras, muitas pessoas reprovam o projeto pela estratégia de conciliação, ao invés do enfrentamento.

    Na história, Viggo Mortensen interpreta Tony Villalonga, homem grosseiro e racista, de origem italiana, que aceita trabalhar como motorista de um músico negro de sucesso, Don Shirley (Mahershala Ali). Ele reprime suas opiniões preconceituosas em nome do bom salário, necessário para manter a família em dificuldade financeira. Pela premissa, o projeto poderia soar subversivo: é raro ver o homem negro no papel de um sujeito educado e instruído, tendo como funcionário um homem branco e rude. De certo modo, esta é a inversão de Conduzindo Miss Daisy, no qual o personagem negro trabalhava como motorista da mulher branca.

    Mesmo assim, a construção dos personagens incomoda: o homem refinado é engomado demais, beirando a caricatura, ao passo que o motorista ignorante é tão bruto que passa a maioria de suas cenas comendo ou batendo em alguém. Farrelly não é um diretor muito sutil, tratando portanto de tornar esses traços claros até demais. "Mas é comédia", poderiam retrucar alguns, em defesa dos exageros. No entanto, esta também é uma história real, também é um drama, também é um filme sobre racismo. Com momentos de leveza ou não, existe uma responsabilidade social ao abordar temas como este.

    Passados os estranhamentos iniciais, com o racismo de Tony versus o sentimento de superioridade de Shirley, acontece o inevitável: eles se conhecem melhor, tornam-se amigos, cuidam um do outro. O motorista ensina ao músico como ser mais descontraído, a não tentar agradar tanto as pessoas; enquanto este mostra ao brutamontes a possibilidade de vencer uma discussão através conversa, além da necessidade de expressar sentimentos. Eles se equilibram, se completam. Ambos se tornam pessoas melhores ao final. "Eu não sou racista, tenho até um amigo negro", poderia dizer Tony.

    Ora, a ideia de que os dois tenham posições equivalentes, que tenham o mesmo a "ensinar" um ao outro, pode ser questionada. Em termos financeiros, Shirley não passa por dificuldades, entretanto o roteiro reforça a ideia de que esta riqueza ocorre em detrimento de uma vida afetiva e social: o músico não possui amigos, namorados, nem familiares próximos. Como afirma num diálogo, ele não se sente negro perto dos outros negros, não é branco entre os brancos, nem "homem o suficiente". A cena final deixa claro que, mais importante do que a riqueza e a fama, é estar em família, dividir uma refeição com quem se ama. O verdadeiro "rico", para a trama, é Tony.

    Além disso, o motorista é o protagonista dessa história - vale lembrar que Viggo Mortensen concorreu ao Oscar de melhor ator, enquanto Mahershala Ali venceu a estatueta de coadjuvante. O ponto de vista pertence ao homem branco: começamos a história com ele, e terminamos com ele, é com Tony que fica a câmera quando Shirley se mete em encrencas duas vezes, é no hotel dele que a câmera entra, enquanto o músico é visto à distância, na sacada de seu apartamento. O olhar de Green Book pertence a um homem branco, dirigindo-se a outro homem branco.

    Ao final, o racismo é superado: o grande milagre natalino ocorre quando Tony defende o artista negro em frente à família, algo que ele jamais faria no início da trama. Pronto, o preconceito acabou, enquanto todos celebram um feriado cristão. A noção de que o racismo seja vencido pela tolerância a uma única pessoa negra é bastante redutora. Nada indica que Tony se abriu a todos os negros, e que ficaria feliz em receber outros homens negros em sua casa. Essa superação individual nunca enfrenta a questão como um problema do sistema inteiro: é uma questão de informação, de amor, de boa vontade. 

    Em outras palavras, Green Book aborda o racismo como uma questão moral, ao invés de um tema social e político. O mesmo acontecia em produções como Histórias Cruzadas (no qual Emma Stone enfrentava o racismo e valorizava as pessoas negras), Estrelas Além do Tempo (no qual Kevin CostnerKirsten Dunst precisavam se abrir à diversidade e abrir espaço às engenheiras negras) e O Mordomo da Casa Branca (no qual uma série de presidentes brancos adotam medidas mais tolerantes à diversidade étnica e racial após o contato com um funcionário negro de família engajada).

    Nestes casos, o sofrimento da população negra é utilizado como veículo para a ascensão moral dos brancos. São eles que melhoram como indivíduos no final, que passam por uma redenção religiosa, aprendendo a ser caridosos, a respeitar a diferença, a amar ao próximo como a si mesmos. Tony pratica a caridade no final de Green Book, em movimento semelhante ao de Skeeter (Emma Stone) e Al (Kevin Costner). Os personagens negros destes filmes continuam em posição de inferioridade, ainda que conquistem o reconhecimento de algumas pessoas ao redor, que façam amigos e sejam moderadamente inseridos na sociedade. 

    Estes filmes misturam drama e comédia, fazem rir e chorar, e no final trazem uma recompensa prometida: o fim das desavenças, a promessa de um futuro melhor, a amizade entre os opostos. Simbolicamente, o futuro termina de maneira otimista, conferindo aos brancos a responsabilidade de acabarem, por boa vontade ou consciência moral, com o cenário do racismo. Pouco é mostrado sobre a luta dos negros para emanciparem a si mesmos, ou seja, a luta diária pelo ponto de vista dos negros. 

    Uma abordagem contrária aos filmes de conciliação se encontra nos discursos de enfrentamento. Entre as produções recentes, Infiltrado na Klan, Corra!, 12 Anos de EscravidãoMoonlight - Sob a Luz do LuarSelma - Uma Luta Pela Igualdade se encaixam nessa categoria. Trata-se de projetos que não pensam o racismo como uma questão individual a ser superada através do afeto, e sim um problema do sistema, afetando as principais instituições políticas, religiosas e educacionais. 

    Em Infiltrado na Klan, Spike Lee denuncia o racismo dentro da polícia, enquanto critica a liberdade de ação de grupos como o Ku Klux Klan. Corra! utiliza o horror para representar o preconceito racial dentro das classes mais ricas, mesmo aquelas se consideram progressistas, enquanto Moonlight percebe as relações entre racismo, homofobia e preconceito contra os pobres. Os protagonistas desses filmes são pessoas negras, e não por acaso, os diretores também.

    Ao contrário dos filmes conciliatórios, repletos de casos excepcionais (o pianista negro com doutorado em artes, engenheiras negras brilhantes em cálculos, a empregada doméstica com talento inato para a literatura), os filmes de enfrentamento trazem casos comuns: Ron (John David Washington), Chris (Daniel Kaluuya) e Chiron (Trevante Rhodes) não possuem habilidades especiais: eles representam a média de pessoas negras que sofrem com o preconceito e a falta de oportunidades. São figuras com que qualquer espectador não-branco possa se identificar.

    Estas histórias não buscam apresentar o fim do racismo, preferindo compreender as origens do problema, suas consequências na sociedade como um todo, e sobretudo o fato de que estamos longe de encontrar uma solução. Spike Lee termina seu filme estabelecendo conexões com o racismo manifestado por Donald Trump, Corra! se abre à ambiguidade do futuro do protagonista (os grupos racistas combatidos por ele não deixarão de existir), Moonlight termina de modo ambíguo, ressaltando que o futuro do protagonista será marcado para sempre pelas feridas da infância.

    Os filmes de conciliação abordam a questão do racismo sem incomodar ninguém, nem provocar o espectador - seja ele branco ou negro. O público caucasiano deixa a sala de cinema sabendo que o racismo acabará eventualmente, que mesmo o tipo mais grosseiro pode abraçar as diferenças, e que o problema se reserva a indivíduos pontuais. O espectador não precisa, portanto, se sentir particularmente implicado pelo discurso.

    Já as narrativas de enfrentamento são feitas para perturbar, dizendo que o público que ele faz, sim, parte do problema, que "ter um amigo negro" não basta para ser tolerante, que existem escolas, políticos, padres e pessoas influentes que continuam a tratar indivíduos negros (e LGBT, hispânicos, pobres etc.) como inferiores. Isso provoca, acusa, interpela o espectador. Uma forma de cinema dialoga com um espectador passivo, que deseja ser entretido, enquanto a outra conversa com o espectador ativo, aberto a ser desafiado, a concordar ou discordar.

    Em outras palavras, o enfrentamento é um convite à reflexão, enquanto a conciliação evita pensar nas origens ou nas consequências do problema. Uma abordagem afirma que o problema continua grave, latente, já a outra acredita que tudo se resolve com o tempo, com o caminhar natural das coisas, não sendo necessária qualquer forma de intervenção do povo (militância), do governo (medidas políticas) etc.

    Talvez por isso, em tempos de política polarizada, quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas quer se mostrar aberta à igualdade de sexos e de gênero, a vitória de um filme como Green Book - O Guia desperte tamanha rejeição. Enquanto os ataques às minorias se multiplicam, apostar numa visão tão inofensiva e cômoda sobre o racismo soa como um desserviço aos filmes que realmente colocam o dedo nas feridas abertas da América.

     

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