Osório, Rio Grande do Sul. A cidade conhecida por seu parque eólico foi palco das filmagens de A Primeira Morte de Joana, segundo filme da premiada diretora Cristiane Oliveira, também responsável pelo elogiado Mulher do Pai.
O AdoroCinema teve a chance de visitar o set da produção no final do ano passado. Sob um calor escaldante (sim, o Sul do Brasil não é feito só de frio!), acompanhamos o trabalho do elenco e da equipe na locação da casa da jovem protagonista, que mora com a mãe e a avó.
A trama segue Joana (Letícia Kacperski), que perde a tia-avó (Rosa Campos Velho), uma mulher que nunca namorou e morreu virgem, aos 70 anos de idade. Curiosa sobre essa situação, a menina precisa lidar com a realidade do falecimento e com as diversas transformações e reflexões que cercam a adolescência. Assim, começa a investigar a vida da parente, ao lado de sua amiga Carolina (Isabela Jardim).
Uma história de transformação
Ambientado em 2007, o filme relaciona as mudanças da menina diretamente com o parque eólico de Osório, que estava sendo construído na época e, por muito tempo, foi considerado o maior da América Latina. Interpretada pela debutante Letícia Kacperski, a protagonista passa por uma série de eventos fantásticos que definem seu relacionamento com a mãe e a avó.
"A Joana tem 12 anos de idade e está neste momento de descoberta das relações, de começar a prestar atenção nas pessoas ao redor", comentou a diretora Cristiane Oliveira sobre o mote da história. "É uma menina que está vivendo um processo de conhecimento do seu entorno e de autoconhecimento numa paisagem em transformação."
"Ela passa por essa investigação e, dentro desse filme, enfrenta várias mudanças", comentou a protagonista Letícia Kacperski. "Do começo ao fim, notamos que ela muda e coisas ao redor dela vão mudando também. Ela muda pelas pessoas e por si mesma."
Interpretar essas diferentes fases da personagem foi um desafio para a jovem Letícia. Isso porque, ao gravar um filme, as filmagens naturalmente acontecem fora de ordem, de acordo com cada locação. "É uma loucura", admitiu a jovem atriz. "De uma hora para a outra, tenho que estar super mudada. Uma hora, estou mais infantil e, na outra, já estou na 'fase dois' dela."
Resgate de uma cultura
A Primeira Morte de Joana ainda tem como objetivo resgatar a história da cultura alemã, muito presente nessa região do Rio Grande do Sul, e da produção de cucas — receita de bolo inspirado na Streuselkuchen, tradicional da cozinha alemã — que, segundo a diretora, não é conhecida ou disseminada no restante do Brasil. Na trama, Joana, sua mãe e sua avó produzem e vendem cucas. "A história surgiu da minha experiência, do meu contato com essa região", revelou a diretora que escreveu o argumento da produção, submetido em 2013 para a linha de desenvolvimento de projetos do fundo setorial do audiovisual e, então, convidou a atriz e roteirista Silvia Lourenço para integrar o projeto.
Por Osório ser uma cidade localizada no caminho para o litoral, onde famílias sulistas têm a tradição de passar o verão, é muito comum parar para comprar as saborosas cucas na estrada. "É uma coisa muito típica da nossa região. Fui morar em São Paulo alguns anos atrás e fiquei surpresa que no resto do Brasil não se conhecia cucas", revelou a cineasta. "Hoje em dia muitas crianças nem sabem sua origem, nem se conectam mais com esse passado. Então, esse foi um trabalho importante de resgate", afirmou ela, que fez pesquisa com historiadores da cultura alemã e terapeutas juvenis.
"Fez todo sentido dentro de uma família que vive de uma atividade meio artesanal, que eu já queria que fosse a produção de cucas. Era uma coisa muito da minha infância, que a minha vó fazia quando eu ia para a casa dela e eu gostava muito. E eu imaginei essa família que se conectou diretamente com a história desses imigrantes que produzem essa receita". Dizem as boas línguas que a cuca de uva é a melhor da região.
Encontro de gerações
Uma das principais questões abordadas em A Primeira Morte de Joana é a visão feminina, de cada uma das mulheres e suas diferentes gerações: filha, mãe e avó. "É um percurso de conhecimento de uma identidade feminina, de perceber como as mulheres ao redor dela lidam com determinadas temáticas que ela está recém descobrindo", explicou a cineasta. "A Joana vive esse conflito. O que é um impulso natural dela de ser, versus o que ela acaba sendo direcionada, ou tolhida ou educada para ser de outra forma, por conta das estruturas sociais e familiares."
Cristiane Oliveira ainda exaltou que, apesar de sua temática feminina, o filme tenta construir a personagem de Joana longe dos estereótipos. "É um filme que fala de mulheres, que traz temáticas relacionadas muito ao universo feminino, mas todas elas estão ligadas a homens ou conceitos que se tende a relacionar ao masculino. Por exemplo, tomadas de atitude, do brigar pelo que se quer. Muitas vezes o estereótipo tende a colocar a mulher num lugar mais de conciliação e de cuidado. E tem vezes que chega alguém que quebra isso. Qual é a personalidade da Joana independente das expectativas de gênero também?".
Joana Vieira, que interpreta Lara, mãe da protagonista, revelou que é difícil viver uma mãe sem ter filhos. "Tem essa coisa do trabalho, de dar ordem, da venda, de botar as coisas em dia. Só que a filha desafia esse olhar. Essa menina que está conhecendo o mundo, perde a tia e a Lara precisa pagar as contas. Ela quer que a filha acompanhe, veja as vendas, aprenda a embalar as cucas, essas coisas práticas do dia a dia. A Joana desafia essa mãe que quer cuidar, dar amor… Difícil ser mãe, não é?", disse a atriz, emocionada.
As atrizes, no entanto, criaram laços que foram transportados para as telas. Para Letícia, foi fácil desenvolver um relacionamento com Joana Vieira e Lisa Becker, que interpretam a mãe e a avó de sua personagem, respectivamente. "Elas são simpáticas, amorosas, generosas, são pessoas muito do bem. Gosto muito delas, tenho um carinho enorme e foi muito fácil trabalhar com cada um dos atores. É um elenco incrível, com pessoas maravilhosas."
Escolha do elenco
A escolha para construir o elenco e a equipe foi trazer nativos do Rio Grande do Sul, tantos para os atores veteranos Janaina Kramer, Roberto Oliveira, Lisa Becker, Rosa Campos Velho e Emílio Speck; quanto para as atrizes novatas Letícia Kacperski e Isabela Jardim.
A produtora do filme, Aletéia Selonk, da Okna Produções, e a diretora Cristiane Oliveira — que trabalharam juntas também em Mulher do Pai — comentaram que queriam protagonistas jovens, na faixa etária de 12 anos de idade, que nunca tivessem atuado.
"Trabalhar com duas meninas que já não tem experiência, às vezes ajuda a puxar para cima chamar pessoas que tenham alguma experiência. Não só no sentido da atuação, mas de aguentar esse set que é tão longo. São cinco semanas. Manter concentração, o pique, o ânimo, e o foco no trabalho. Pessoas mais experientes ajudam nesse trato que é do camarim e fora de set também", comentou Cristiane.
A fim de preparar atores novatos, a cineasta passou alguns filmes para que eles analisássem as atuações, como em A Fita Branca, Corpo Celeste, As Maravilhas e Luz Silenciosa — cada um designado para determinado profissional, dependendo da faixa etária, é claro. Além disso, para as duas protagonistas, antes de entregar os roteiros a elas, contou a história e pediu que as jovens escrevessem com suas próprias palavras.
Segundo Letícia, foi "sensacional" trabalhar com Cristiane Oliveira. "Ela pergunta como nos sentimos sobre tal situação do filme. O preparo que ela vinha tendo, antes mesmo das filmagens começarem, foi ótimo porque eu anotava um resumo das coisas que falávamos. E aqui, agora, é muito mais fácil porque eu leio o roteiro com as minhas palavras. Então, para interpretar, é muito mais fácil."
Locações
A Primeira Morte de Joana tem muitas cenas externas, todas elas margeadas pelo parque eólico, que sempre marca presença na tela. Por sorte, o tempo estava ensolarado, o que facilitou as gravações.
O plano B, caso algum dia chovesse ou estivesse nublado (o que, felizmente, não ocorreu), era gravar cenas interiores, entre elas, na casa de Joana. Situado entre a lagoa e o morro, na frente de uma rodovia, o casebre gera cenas com um visual tanto belo quanto desafiador. Afinal, como colocar uma grande equipe dentro de uma casa rústica e pequena, e ainda lidar com o constante barulho dos carros que passam pela estrada? No dia em que o AdoroCinema visitou o set, mal entramos no local, de tão apertado e abafado, tivemos que dar espaço para a produção continuar seu trabalho.
Raul Locatelli, técnico de som que trabalhou com Cristiane Oliveira também em Mulher do Pai, teve o desafio de gravar próximo da rodovia. "[Dublar as cenas posteriormente] sempre é uma possibilidade quando você trabalha nessas condições", admitiu ele. "Mas estamos tentando ficar com os diálogos e com as falas originais dos atores. Eles gostam muito essa localização. Fotograficamente é muito boa, então nunca foi uma opção não fazer o filme aqui."
Para as imagens, a casa também apresenta um desafio, afirmou o diretor de fotografia Bruno Polidoro. "Trabalhamos muito com planos abertos no filme. A cena [da casa] se transcorre em um plano longo, e vai acontecendo na frente da câmera. Para esconder a luz, tem que ser nesse cantinho, a câmera ali, às vezes, esmagada na parede. E, também, tentando utilizar outros espaços, atrás da porta, atrás da janela, para dilatar um pouco esse espaço", explicou ele, comentando sobre isso ser também uma escolha de roteiro. "Queríamos mostrar essa claustrofobia que a Joana vive. Tanto geográfica, do morro, da água, quanto do espaço familiar."
O vento
Enquanto na casa havia a alternativa de fechar as janelas e isolar o som ao máximo — fato que melhorava o áudio de dez a vinte por cento, por ser tudo de madeira — nas cenas externas não era tão fácil gravar, por conta do vento e do próprio barulho da rodovia. Naturalmente, Osório é uma cidade que venta constantemente. Esse foi outro desafio da produção.
Como o parque eólico é parte integrante da trama, a equipe abraçou as dificuldades e fez do vento mais do que um aliado, um personagem. "É muito difícil gravar diálogos com vento. Não importa se você tem que dublar o diálogo, o vento está presente no ar porque mexe a roupa, a folhagem das árvores, você pode ver claramente esse vento", disse o técnico de som Raul Locatelli. "Impossível que ele fique fora do filme. Afeta praticamente tudo o que você vê, tudo tem esse movimento."
O diretor de fotografia Bruno Polidoro concorda. "No segundo dia de filmagens, ventou muito, achamos que não ia valer o som. Eu segurava a câmera e ela tremia, tudo tremia. Fomos percebendo que lutar contra esse vento era perder a batalha e que precisávamos agregá-lo como um personagem. Que cidade é essa que você não consegue, às vezes, falar sem estar segurando o cabelo?", ponderou. "Fomos cada vez mais assumindo o vento, de estar dentro de casa mas as árvores se mexendo lá fora, a cortina está sempre em movimento. Esse vento que visualmente é muito bonito, mas ao mesmo tempo é uma perturbação. Quando você quer pensar, às vezes quer um momento de paz e está ventando."
A Primeira Morte de Joana teve suas filmagens encerradas em novembro de 2018.