No 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, o diretor brasileiro Aldemar Matias apresentou um projeto bastante especial: La Arrancada, produção franco-cubana-brasileira sobre uma família de Havana cujas transformações refletem as mudanças do país. Enquanto o pai está na cadeia e o filho pensa em deixar o país, a filha cogita abandonar a carreira de atleta e a mãe, figura centralizadora da família, preserva a paixão pelo período socialista.
Com senso de humor e imagens belíssimas, o documentário foi um dos nossos filmes preferidos da última Berlinale (leia a nossa crítica). O AdoroCinema aproveitou para conversar com o cineasta sobre o projeto:
Como conheceu essa família, e por que acreditou que seria um bom tema para o documentário?
Aldemar Matias: Eu já conhecia a Marbelis, mãe da Jenifer, de um curta que eu tinha feito como conclusão de curso na ICTV. Eu adorava essa mulher, ela era a minha musa do documentário. Estava tentando fazer um outro projeto que não estava funcionando, então chamei a Marbelis para gravar um dia na praia. A Jenifer, que eu tinha conhecido três, quatro anos antes, na época do curta-metragem, apareceu. Eu nem sabia que estava treinando como atleta.
Quando eu vi a interação das duas, parecendo melhores amigas, mas com personalidade tão distintas, foi quando acendeu a luz: aí pode ter uma história. Então, cancelei todos os outros personagens, voltei com esse material e decidi gravar dezoito dias só com essa família. Eu sabia que a Jenifer hesitava entre investir na carreira de atleta ou sair do país. Ela, para mim, representava a nova geração.
Era muito interessante a relação da mãe com essa bagagem patriota devido ao trabalho dela. Ao mesmo tempo, ela pode ser completamente contraditória, apoiando os filhos em outros desejos muito diferentes dos dela. Além disso, elas funcionam super bem em câmera, adoro a personalidade delas e, plasticamente, tudo me convenceu que aquela família era o que eu precisava.
Você está sempre muito perto dos personagens, mas nenhum deles parece atuar para as câmeras. Como criou essa intimidade?
Aldemar Matias: Eu nunca gostei do discurso do tipo: “Vou fazer documentário e vou ser invisível”. Isso não existe. É importante assumir que a câmera está ali e nunca pedir para o personagem não olhar para a câmera. Se alguém comenta a presença da câmera e contribui para a narrativa do filme, por que não utilizar? Eu já conhecia a Marbelis e tinha certa intimidade com ela, mas não dentro do espaço da casa. Ela estava acostumada comigo filmando no centro de fumigação dela, que é o ambiente do curta-metragem anterior.
O resultado final foi editado a partir de muitas horas de filmagem. Tinham horas em que elas se escondiam, começavam a sussurrar coisas que não queriam que eu escutasse, e eu precisava respeitar isso. Imagina uma pessoa estar com a câmera na sua cara o dia inteiro, por três semanas seguidas? É normal querer se proteger em alguns momentos. Certo dia surgiu a cena do Facetime com o filho dela. A gente tinha previsto fazer outra coisa, mas ela preferiu ficar em casa. A ligação aconteceu nesse momento.
Então, foi uma mistura entre criar situações e permitir que a realidade também surja. Isso vai dessa geração do documentário que deixa as coisas surgirem em câmera, mas também faz com que aconteçam. Na primeira cena, por exemplo, dentro da sala de aula, foi como mentir para dizer a verdade: a Jenifer já tinha passado pela matéria de sociologia do esporte, mas eu precisava muito dar um norte inicial do fardo, da honra e da missão de ser um atleta nesse país. Eu precisava da Jenifer escutando aquelas palavras. Por isso, colocamos ela de volta na sala de aula.
Algumas coisas acontecem porque a gente quer que aconteça e têm coisas que a Nossa Senhora do Documentário faz uma intervenção e coloca ali na frente, como um Facetime de repente na hora em que estamos na casa dela.
A família impôs alguma restrição às filmagens? Pediram para não filmar algo?
Aldemar Matias: Não, ia muito mais do bom senso e da sensibilidade com o outro. Por exemplo, alguns dias a Marbelis dizia: "Eu não quero filmar", por ser mais diva. Eu via que era só capricho, para ver eu me desesperar. Ela adorava ver eu me jogar no chão e dizer: “Pelo amor de Deus, eu estou com uma equipe aqui, a gente precisa filmar. Eu tenho só dezoito dias, não posso ficar mais tempo”. No trabalho dela, ela ama deixar claro que está no poder, e brinca com isso. Eu odeio e amo isso nela. Então, quando eu via que era por capricho, eu insistia, mas às vezes eu não filmava porque eu sabia que tinha que dar esse tempo para ela.
Por exemplo, depois que o filho Yeyo chegou no Chile, ele teve problemas porque o trabalho prometido para ele não deu mais certo. Ela estava muito triste quando fui falar com ela no quarto, senti que estava invadindo. Essa cena seria incrível, mas ela não merecia ter uma câmera na cara dela naquele instante. Ela precisava do momento sozinha, e eu tinha que respeitar isso.
Você se sente responsável pela maneira como as filmagens influenciam a vida dos personagens?
Aldemar Matias: A responsabilidade, quando a gente está fazendo um documentário, não se limita a: “Assina a autorização de imagem, por favor", e depois dane-se. Às vezes esses personagens não têm ideia da proporção que tomam certas coisas. Eles podem me autorizar a filmar certas coisas, mas eu sei que isso pode gerar problema para eles, então não filmo, não utilizo. Não tem certo e errado, é importante cada diretor construir com o seu personagem, ter carinho e respeito, não colocar em um altar e querer fazer homenagem porque perde a graça. Esses limites são um pouco difusos, vai da relação do diretor com o personagem.
O diretor é sim responsável por cuidar dessa exposição do personagem. Para mim é fácil: eu vou, filmo e depois vou embora. Mas e se tiver qualquer problema depois? Eu realmente não gosto dessa corrente onde o documentário é o que realmente vale, do tipo "tudo pela arte". Eles são pessoas reais, eles têm a vida deles e nenhum filme é mais importante do que a vida das pessoas. Em relação a isso, eu fiquei tranquilo. O filme poderia ficar ruim, mas eu sei que não agi de uma maneira que pudesse causar problemas para eles depois.
O filme tem imagens de grande apuro estético, mais comuns em ficções.
Aldemar Matias: Tem muito desastre também, se você for ver o material bruto! Na verdade, meus planos favoritos não estão no filme porque eu pensava: “Nossa, essa fotografia está incrível”, mas lógico que minha editora incrível falava: “Não, isso não contribui com a história, é redundante, é capricho estético, vamos tirar”. Ainda assim, o cenário ajuda muito: o centro de treinamento, os corpos atléticos com as roupas coloridas... A plástica dos lugares ajuda muito.
O que eu mais gosto na direção de um documentário é a adrenalina de tomar decisões em milésimos de segundo. Por exemplo, a gente está dentro quarto e pensa: “Abre um pouco essa janela. Não, não abre tanto, entrou essa luz. Ih, entrou barulho do vizinho”. Então, é melhor sacrificar o som por essa boa luz que está entrando na cara deles ou garantir um bom áudio e fechar a janela, deixando todo mundo no escuro? É melhor interromper um diálogo e desligar o ventilador para não causar ruído ou deixar o ventilador porque eu não posso perder esse diálogo?
Eu trabalhei como repórter de um canal local em Manaus e eu comparo muito esse tipo de filmagem a fazer programa ao vivo, porque é ali, aquele momento não vai se repetir e tem que tomar essas decisões imediatas. Às vezes funciona, às vezes não. As vezes eu quero me fuzilar pela perda de foco em momentos cruciais, mas se a gente consegue deixar um aspecto conectado com a história, dá para perdoar essas falhas também.
Como funcionou a coprodução entre três países?
Aldemar Matias: Oficialmente, ela nem é coprodução. É uma tripla nacionalidade, mas o projeto foi todo financiado na França. A Berlinale aceitou a tripla nacionalidade porque a equipe de filmagem é inteiramente cubana, é tudo filmado em Cuba, com um diretor brasileiro e pós-produção na França.
O financiamento foi todo na França, mas eu aportei porque tenho uma empresa no Brasil. A pesquisa, no início, foi feita via empresa brasileira, mas a gente nem chegou a considerar isso no orçamento. A empresa está mais voltada para fundos regionais de curtas e séries. Deixei a produtora tocar o financiamento desse projeto. Eu ia escrevendo, eles buscavam a grana.
Qual é a importância de lançar este filme em 2019?
Aldemar Matias: É confortável para mim falar da transição política de um país, por mais que eu conheça bem, mas que não é o meu país. No final do processo do filme, na pós-produção, eu já estava com a cabeça muito mais na transição política brasileira do que na transição política cubana. A associação possível entre eles pode servir para qualquer sociedade em momento de tensão política menos intensas que a de Cuba, ou muito mais intensas como a do Brasil agora. Trata-se de como reposicionar os afetos de familiares ou de pessoas próximas com posições políticas distintas, de lados opostos.
Não é o caso específico da Marbelis e da Jenifer, que não têm opiniões políticas totalmente opostas. Mas por nascerem em gerações distintas e em Cubas distintas, elas naturalmente têm desejos e ambições distintas. Mesmo assim, pelo afeto existente naquela família, elas precisam convergir de alguma maneira. Todos estamos vivendo isso no Brasil agora, todo mundo tem alguém na família, um amigo que está do outro lado da força.
Seria muito mais fácil odiar, mas essa pessoa é seu pai, sua filha, sua prima e a gente tem que encontrar uma maneira de lidar. O que eu faço com esse afeto agora? Bloqueio da vida, excluo de rede social? Para mim, é muito importante falar de contextos políticos grandes em uma intimidade familiar. Isso ajuda muito a causar reflexões sobre essas relações.
Acredita que o filme possa ser interpretado no Brasil e em Cuba da mesma maneira?
Aldemar Matias: Eu tive isso na cabeça e no coração, porque não foi uma opção para mim. A tensão política brasileira era o que estava dentro de mim no fim da montagem do filme, na reta final da pós-produção. Eu estava finalizando esse filme sobre Cuba com o momento político do Brasil na cabeça, então isso influenciou muito.
Se eu vou conseguir alcançar as pessoas da mesma maneira, não sei. Espero que consiga, mas o projeto não foi pensado com essa ambição. Não foi nada muito estratégico: era o que eu podia oferecer de mais sincero naquele momento.