Durante o Festival de Berlim 2019, um filme bósnio se destacou dentro da concorrida Mostra Panorama: The Stone Speakers, de Igor Drljaca.
O cineasta e professor de cinema investiga um tema interessante e difícil de abordar em imagens: a reinvenção de cidades pacatas que se convertem em rotas turísticas por motivos religiosos ou culturais. O filme analisa locais bósnios que se transformaram após serem mencionados num livro de sucesso, ou quando passaram a sediar encontros religiosos.
Entrevistando moradores locais, autoridades e guias, o filme interpela o espectador sobre a maneira como o nosso olhar se transforma em relação a uma mesma paisagem, dependendo do valor atribuído a ela. Em última instância, The Stone Speakers constitui um exercício fascinante de análise da imagem.
O AdoroCinema conversou com o cineasta sobre o documentário:
O que o título The Stone Speakers representa para você?
Igor Drljaca: Eu estava interessado no modo como as pessoas criam monumentos ou representações imóveis dos lugares - seja de um período específico da história ou de uma espécie de evento específico, e como as pessoas se relacionam com os espaços e como eles o apresentam para o mundo.
Enquanto eu estava gravando o filme, também fiquei fascinado pelo período medieval na Bósnia, algo pouco pesquisado, mas que é bem político por causa das três narrativas dominadoras que existem na Bósnia. É algo vinculado aos três grupos étnicos. Pensei então no modo como as pedras e essas visões são representadas, como um símbolo, mas também como estrutura ideológica, como uma extensão da História analisada de perto.
Como selecionou estas pessoas em particular, e por que decidiu não identificá-las?
Igor Drljaca: É muito importante tratá-las igualmente, e um título sempre cria uma distância nesse sentido. Se você é apresentado a alguém que está aposentado ou é um jornalista versus alguém que é professor ou prefeito a relação muda, porque algumas das pessoas do filme pertencem ao alto escalão enquanto outras são pessoas do dia a dia. Eu não queria que o título de alguma forma representasse um jeito de julgarmos se o que eles estão dizendo tem mais valor ou não.
Eu sou um cara meio cético, não estou acostumado com documentários baseados em informações didáticas. Esses documentários podem estar interessados na informação, mas ao mesmo tempo se prendem demais a como as pessoas contextualizam esses espaços e não nos espaços em si, entende?
Você sempre pretendeu separar som e imagem, usando os depoimentos como narração off?
Igor Drljaca: Essa abordagem em particular foi uma coisa que eu descobri ao longo do processo, enquanto fazia as primeiras pesquisas. Elaborei um processo onde os locutores são como objetos móveis. Eu queria que as suas vozes carregassem o pouco de informação que nós precisamos para situar o lugar. Eu não queria que o público ficasse amarrado à personalidade do locutor e sim olhando para o espaço em si, quase como um turista. Eu queria que tivessem essa experiência de tour em cada um desses lugares.
Ao invés de aproximar a câmera desses lugares, você observa de longe, sem interferir.
Igor Drljaca: Era importante que o cenário falasse ao invés de, simplesmente, propor um passeio. Eu queria que as pessoas vissem outros turistas e como aquele lugar é representado. E que fossem, lentamente, hipnotizadas por essa paisagem e pelo processo. Mas era importante ter o distanciamento do telespectador, para que ele pudesse ver o panorama do que eu estava tentando fazer com o filme.
É desta maneira que criamos significado, seja ele espiritual ou material. Era muito importante para mim que, apesar da presença de momentos muito viscerais, os espectadores se lembrassem de que estão assistindo a um filme. Isso também passa pela estrutura: o filme é desenhado assim. Então, depois de 25 minutos você pensa: ”Ok, estamos indo em uma nova jornada”. Deste modo, você compreende como esse país cria seus significados.
O documentário nunca julga aquelas pessoas: nem os religiosos fervorosos, nem os místicos que acreditam obter poderes de uma pedra.
Igor Drljaca: Exato. Por isso, acho que o filme é bem político. Eu não estou deixando ninguém do lado, seja ele de esquerda, tradicionalista, de direita… Cada grupo vai glorificar um período da história, destacar seus heróis e encontrar seus vilões. Esse é o principal problema em criar diálogos significativos.
Por isso, eu não estou interessado em apontar dedos. Só quero proporcionar um espaço onde você possa se ver, e perceber que está criando espaços à sua maneira. Você está criando significado, elaborando enquadramentos morais. Não é sobre certo e errado, é mais fundamental que isso. Eu estava mais interessado em mostrar que todas as narrativas no país operam de maneira semelhante. Meu objetivo é criar diálogo. Eu não estou interessado em saber qual período é correto e qual período é errado, e sim em entender como eles se apresentam enquanto informação.
O filme aborda um contexto muito particular da Bósnia. Acredita que ele possa ser interpretado da mesma maneira em outras partes do mundo?
Igor Drljaca: Talvez algumas pessoas vejam como se fosse um cartão postal da Bósnia, uma noção de como o país é visualmente, dos discursos que são ditos no país, mas tendo uma visão superficial de tudo. Acredito que as pessoas da região sejam capazes de captar as insinuações específicas, inacessíveis ao público mundial.
As pessoas que forem mais engajadas politicamente e tiverem noção desses problemas em outros países vão captar a tensão. Mas eu estou satisfeito com qualquer uma dessas interpretações, porque filmes são como performances de artes de qualquer tipo: existem níveis de experiências.
Apesar de ser um problema local da Bósnia, ele está presente em algum período particular dos Estados Unidos como na Guerra Civil. Existe uma tensão em como o período é representado, em como cada lado vê isso. Então, essas estruturas existem em qualquer lugar. Acredito que mesmo pessoas fora da Bósnia vão tirar algo disso.
De que maneira este projeto se insere na produção cinematográfica bósnia recente?
Igor Drljaca: Não existem muitos filmes na Bósnia. Às vezes um ou dois por ano. Existem muitos filmes feitos internacionalmente sobre a Bósnia, muitos sobre o período da guerra. Alguns filmes complicam questões importantes ao escolherem lados.
Não digo que você não pode escolher um lado, mas seus argumentos precisam ser sólidos. Muitos projetos recentes sobre o país abordam a guerra. Alguns filmes lidam com a questão da corrupção, enquanto outros resgatam a ideia de que tudo era melhor antes. Meus filmes anteriores lidam com a guerra também e chegam a uma conclusão e você pode avançar a partir disso se valorizar diferentes diálogos.