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    "É possível sim conviver com as diferenças", explica Démick Lopes sobre Greta, drama brasileiro LGBT exibido em Berlim (Exclusivo)

    Greta foi selecionado na Mostra Panorama da 69ª Berlinale.

    Entre os doze filmes brasileiros selecionados no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, um título era particularmente aguardado: o drama Greta, de Armando Praça.

    Na trama, Marco Nanini interpreta Pedro, um enfermeiro gay de 70 anos de idade, obcecado pela atriz Greta Garbo. Um dia, para liberar um leito no hospital à amiga transexual Daniela (Denise Weinberg), ele esconde em sua própria casa o paciente Jean (Démick Lopes), que acaba de cometer um assassinato. 

    Apesar das diferenças entre eles, surge entre os homens solitários uma relação de cumplicidade e carinho. O AdoroCinema conversou com Démick Lopes sobre o projeto:

    Divulgação / TV Globo

    O que te atraiu no roteiro?

    Démick Lopes: Eu sabia que o Armando Praça tinha esse roteiro há muito tempo, mas ainda não tinha lido. A gente comentava algumas coisas a respeito, mas por ter sido muito longa a gestação desse trabalho, ele já me apresentou um roteiro mais sólido. Notava-se que o roteiro já tinha sido muito decupado, visto, revisto, revisado. Então, o projeto já chegou em uma forma bem madura, pronto para ser realizado. Nem sempre chega assim, eventualmente um roteiro de longa ainda vai ser ajustado. 

    Jean é um personagem misterioso. Sabemos que muita coisa aconteceu no passado dele, mas o filme não revela essa trajetória. Você construiu a história pregressa dele?

    Démick Lopes: Eu sempre faço isso a cada trabalho. Tento entender realmente o antes e o depois desse personagem. O Jean é um cara simples, que vive o aqui e o agora o tempo todo, mas que também enfrenta a questão da solidão. No filme, ele fala mais de uma vez: “Não quero morrer em uma cadeia sozinho”.

    O fato de sempre se relacionar com pessoas mais velhas pode ser uma forma de se sentir cuidado, talvez. A Meire (Gretta Sttar) é bem mais velha que ele, Pedro é bem mais velho que ele. São as companhias possíveis para esse cara. Então, eles se completam nesse sentido. Numa busca de não ficarem só, flertam com esse medo de ficarem sozinhos.

    Divulgação

    Jean tem um passado violento, mas também pode ser bastante carinhoso.

    Démick Lopes: É verdade. Logo no começo do filme, o cara chega ao hospital depois de uma briga em que matou um homem com quarenta e uma facadas. Ele começa num ponto muito alto. Eu sempre vejo essa trajetória como uma partitura. O cara chega ferido, com um pedaço de garrafa na barriga. Eu construo essa curva a partir dali, daquele encontro.

    A troca com o Marco Nanini foi especial porque ele tem muita experiência. Ele vem com uma vontade de fazer e isso me estimula muito. Desde o período de composição de personagens, o Armando Praça acompanhou este processo, porque ele gosta muito dos atores, e tem jeito para isso. O ciclo preparatório de estudo de texto, de roteiro, composição do personagem foi feito em conjunto. Eu, Nanini e Armando, depois com Denise Weinberg e Gretta Star.

    Vocês trabalharam com referências específicas? Como construíram a intimidade tão forte entre Jean e Pedro?

    Démick Lopes: O Armando me sugeriu muitos filmes para assistir. Eu lembro de ter assistido uns vinte filmes sugeridos pelo Armando. Muita coisa do Fassbinder, que foi uma referência assumida para nós. Era minha referência inicial, eu via muita coisa do Fassbinder nessa época de pesquisa e no estudo de personagem. O Armando é um estudioso de mesa, o que me agrada bastante.

    Tenho feito isso no teatro a vida toda: estudo muito o texto inicialmente, lendo o roteiro e relendo, entendendo cada nuance de cena. Depois o Nanini veio para Fortaleza, ele ficou morando em um apartamento e a gente ensaiava lá diariamente antes das filmagens. Eu acho isso muito importante porque o processo do cinema é determinante para o filme. 

    Divulgação

    Dá para perceber quando o diretor realmente se envolve na direção de atores...

    Démick Lopes: Tem essa vantagem de o Armando ser muito ligado a arte, não é? Ele foi primeiro assistente por muitos anos. Fiz alguns filmes em que ele era primeiro assistente, mas sempre preferiu ser segundo assistente para ficar mais perto ainda dos atores. Ele assistia a peças de teatro e comentava as atuações com muita pertinência.

    Eu me envolvo muito no período do processo de preparação, fico sem acessar rede social, me isolo, fico completamente voltado para aquilo, não consigo fazer outras coisas. No período de filmagem então, nem se fala. Esses personagens são densos, não é fácil chegar neles. Você podia cair no maneirismo do sujeito mais novo explorando o coroa, então era preciso encontrar nuances.

    Jean mata um cara, mas a forma como ele é tratado por Pedro faz com que se sinta acolhido. Tem uma hora em que ele fala ao Pedro: “Você é o meu melhor amigo”. Eu sinceramente penso que ele nunca tinha dito isso para ninguém. Já pensou você dizer isso pela primeira vez a alguém?

    Berlinale

    De que maneira esse filme representa o Brasil de hoje, ou o Nordeste de hoje? 

    Démick Lopes: A gente vive um momento de retrocesso muito intenso. Temos que rediscutir coisas rudimentares como o direito de a pessoa de existir, de ser o que ela é. Quanto mais a gente viaja, conhece pessoas e lugares novos, mais a gente percebe que ainda está longe de aceitar o outro. Eu posso ter uma vida tranquila e harmoniosa com uma pessoa que pensa completamente diferente de mim.

    Mas as pessoas perdem muito tempo julgando a vida do outro em relação a comportamentos, em relação ao que ela faz. A vida não é isso, cada um tem que fazer o que se sentir bem, de uma forma que não magoe ninguém, e isso pode ser harmonioso.

    É um mérito, também, do cinema. Eu acredito muito na potência do cinema por isso: ele pode virar o olhar para essas pessoas comuns, pessoas simples, pessoas de setenta anos, que às vezes são um pouco esquecidas. Não é preciso dar lições nem ditar caminhos, mas quando você olha, você percebe que esse cara ama, cuida, sofre. De certa forma, você pode despertar empatia. Acredito que a arte tem essa capacidade de olhar de forma empática para o outro, mesmo ele sendo como ele é, diferente de mim.

    Esse filme demorou doze anos para sair, então agora que deu certo, nada é por acaso. Acredito nisso. A gente vai para o centro do debate com o simbolismo que o Nanini tem para o Brasil, interpretando um personagem que representa a classe média baixa, o padrão mediano do brasileiro. Isso vai despertar debate. Nessa discussão a gente chega à conclusão de que é possível sim viver com as diferenças.

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