Durante o 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, os jornalistas tiveram a oportunidade de conversar com Wagner Moura sobre Marighella, biografia do ex-deputado, poeta e guerrilheiro Carlos Marighella (Seu Jorge), que lutou contra a ditadura militar até ser assassinado numa emboscada.
O filme brasileiro foi apresentado na Mostra Competitiva, sendo recebido pela mídia com aplausos e muitas perguntas sobre o cenário político nacional, tanto nos anos 1960-70 quanto atualmente. Abaixo, você encontra o resultado dessa conversa de jornalistas do mundo inteiro com o ator e diretor de Tropa de Elite e Narcos:
Por que retratar Marighella hoje em dia?
Wagner Moura: Eu sempre fui fascinado pela história da resistência. Historicamente, existiram muitas rebeliões que sempre me fascinaram no Brasil. É claro que a ditadura de 1964 a 1985 estava muito próxima da minha geração. Eu nasci em 1976, e a minha geração já é muito diferente daquela que lutou contra a ditadura, ela sempre foi um pouco alienada.
Além disso, Marighella é da minha cidade natal, Salvador. Cresci tendo Marighella como um dos maiores símbolos de resistência. Quando começamos o projeto, em 2012, nós estávamos no governo da Dilma Rousseff. Quando filmamos, estávamos no governo [Michel] Temer, que não foi tão bom e agora nós estamos no governo [Jair] Bolsonaro.
O filme não foi direcionado para um governo específico, ele é sobre pessoas que decidiram resistir à violência. Eu acredito que os cidadãos têm não só o direito, mas a obrigação de resistir, não importa como. Claro que o filme fala sobre a resistência hoje em dia, mas ele se completa quando ele é visto. Se nós tivéssemos lançado durante o governo Lula seria um filme, no governo [Michel] Temer, outro. Claro que o filme vai ser visto pelo olhar dos brasileiros inseridos em um governo, vamos dizer, fascista.
Eu quero acreditar que o filme vai significar bastante para a comunidade LGBT, para a comunidade negra, para os nativos, para as pessoas que têm tido seus direitos suspensos. Mas, de novo, o filme não é uma resposta ao governo [Jair] Bolsonaro, eu penso que ele é maior do que isso.
Os cientistas políticos americanos disseram: “Marighella morreu falhando e sem fomentar a revolução urbana e parece que suas táticas não trouxeram sucesso a mais ninguém”
Wagner Moura: Isso é interessante. Qual a definição de “falhar”? Nós estamos fazendo um filme sobre Marighella agora, Marighella significa muito para várias pessoas no Brasil. O que o país seria sem aqueles que falharam? A história está cheia de pessoas que falharam. A coisa mais importante é dar o exemplo. Eu prefiro ser alguém que falhou tentando fazer algo a ser alguém que fica escondido.
Essa é outra questão sobre esse momento no Brasil. Eu tenho muito respeito por pessoas que se fazem presentes. Aqueles que colocam a cara à tapa e dizem o que querem dizer, enfrentando as consequências, enquanto há pessoas que preferem ficar no conforto. Marighella não estava no conforto, por isso foi morto pelo Estado em uma rua de São Paulo. Eu não gosto de pensar nisso como uma falha, de jeito nenhum. Eles foram derrotados pelo exército e isso está no filme.
Tem um momento em que Luiz Carlos Vasconcelos está sendo torturado por um homem que diz: “Você perdeu!”. Mesmo assim, prestes a ser assassinado, ele responde: “Não, foi você que perdeu!”, de um ponto de vista moral. Um ponto de vista não somente moral, mas de uma perspectiva histórica muito precisa. Perdedores e vencedores podem mudar de lugar muito rápido, dependendo de como a história caminha.
Por que estrear na direção com um filme tão difícil de produzir?
Wagner Moura: Nós vamos enfrentar muitos problemas quando ele for lançado o filme no Brasil, eu estou ciente disso. Como cineasta, eu poderia ter feito um filme com três personagens, em uma única locação. Mas não sei, as coisas foram acontecendo assim. O livro sobre Marighella foi lançado, eu tinha essa fascinação, e a neta dele, que está no filme, é uma grande amiga minha, que deu a ideia de fazer um filme sobre o avô dela. No começo, eu iria apenas produzir, e depois veio a ideia de dirigir.
Foi difícil mas, ao mesmo tempo, eu não me lembro de ter tido tanto prazer em fazer alguma coisa antes. Minha relação com a equipe foi ótima. Nós viemos em trinta pessoas [para o festival de Berlim]. Todos os atores vieram, e isso é louco. Os atores quiseram que eu colocasse o nome dos personagens embaixo do nome deles, porque queriam assinar embaixo do que os personagens fazem. Então, foi muito intenso, bonito e artístico. Eu não sabia dirigir e todos foram retirados da zona de conforto. Foi incrível.
Este filme pode reacender o debate sobre a ditadura militar?
Wagner Moura: Olha, se você estudar a história de governos totalitários, a primeira coisa que começa a mudar é a semântica. As pessoas começam a chamar as coisas de forma diferente. Teve um ministro no Brasil que disse: “Não foi um golpe militar de 1964, foi um 'movimento' de 1964”.
Não existiam filmes porque a direita estava dominando o país. Vão dizer que a ditadura no Brasil não foi tão dura quanto foi na Argentina e no Chile. Dizem que a economia estava indo bem, que não era tão complicado. Então, a narrativa está começando a mudar agora no Brasil.
Você disse em uma entrevista que espera críticas tanto da direita quanto da esquerda.
Wagner Moura: Bom, os de direita vão criticar por razões óbvias. E os de esquerda… A esquerda é chata, não é? Eu sou de esquerda e sei que nós somos difíceis. Esse filme é um longa-metragem de ficção e ele tem que funcionar como ficção, esse era o meu objetivo, porque já existem muitos documentários sobre Marighella.
Eu levei a sério, estudei muito para fazer esse filme. Não tem uma palavra dita pelos personagens que eu não acredite que eles diriam, mas existem situações, lugares que não ocorreram. Tinha que funcionar como ficção, não é documentário.
Então, provavelmente as pessoas de esquerda vão assistir ao filme dizer: “Ah, isso não aconteceu”. Tudo bem, não aconteceu. Por isso mesmo, eu queria que os personagens fossem únicos, não representam cada pessoa específica da História. Não queria o público fosse ao cinema para aprender fatos e datas, isso é chato.
Pode ser difícil retratar Marighella, levando em consideração que suas práticas eram controversas até dentro dos movimentos de esquerda.
Wagner Moura: Entendo, mas eu não preciso defender Marighella. Se você assistir ao filme, vai ver que Marighella faz coisas que não são legais de jeito nenhum. O personagem do Bruno Gagliasso no filme, o detetive Lúcio, também é um personagem complexo. Eu gosto quando ele enfrenta o cara da CIA e diz: "Eu não estou fazendo isso por você, estou fazendo pelo meu país". É claro que eu me identifico com os revolucionários, mas sei que muitas pessoas vão assistir ao filme e gostar do policial.
Por isso eu escalei o Bruno. Eu não queria que uma recriação idêntica, especialmente para retratar o [Sérgio] Fleury. Toda vez que eu vejo o Fleury nos filmes brasileiros, ele é um cara horrível, como ele de fato era. Eu queria que fosse diferente, então escolhi um cara charmoso, bonito, de olhos azuis, como o Bruno.
Você considera que Marighella tenha tomado decisões erradas?
Wagner Moura: Sim, ele tomou decisões ruins. Eu não queria trair a imagem de Marighella como alguém suicida. Mas sei que, em algum ponto, Marighella entendeu que seu maior esforço era tirar todo mundo do Brasil. Muitos líderes no Brasil quiseram ser exilados. [Leonel] Brizola, Miguel Arraes… Marighella ficou, sabendo que ia morrer. Isso o torna diferente.
Eu não acredito que ele soubesse que haveria uma emboscada na rua, isso é muito controverso. Todos os frades foram presos, toda a igreja foi presa. Isso foi em 1969, quando não existiam smartphones. Muitas pessoas duvidam que, uma semana depois de todos os frades serem presos, ele não soubesse nada da emboscada, mas aposto que ele não sabia mesmo. Essa é outra controvérsia no Brasil, porque a esquerda tende a culpar os frades pelo ocorrido. Frei Betto foi muito rápido ao escrever um livro sobre a participação dos frades, é um bom livro. Eu não acho que Marighella foi suicida, acredito que ele tentou até o fim.
Marielle Franco morreu de uma forma semelhante à de Marighella.
Wagner Moura: Marielle era uma grande amiga minha. É louco que uma mulher negra ativista tenha sido morta, cinquenta anos depois de Marighella, também em um carro, provavelmente por agentes do Estado. O paralelismo entre aquele tempo e agora está claro. É evidente a violência com que o Estado lida com os revolucionários e o modo com que lida com os verdadeiros criminosos.
Como você vê no filme, na primeira cena que Lúcio aparece, ele está matando um homem negro. Isso ainda acontece hoje. O Estado acabou de comprar drones para ir até as favelas e matar negros. O Estado! O governo brasileiro está fazendo isso, é o que eles ainda fazem depois de cinquenta anos da morte de Marighella. Marielle [Franco] morreu do mesmo jeito que Marighella... As similaridades são loucas.
Como você se preparou para dirigir pela primeira vez?
Wagner Moura: Eu não me preparei. Quero dizer, eu não sou um diretor. Eu não me considero um diretor, de forma alguma. Não tenho grande cultura cinematográfica, não vi muitos filmes. Mas eu sentia que, como um ator que tinha trabalhado em muitos filmes, eu estava cercado de pessoas extremamente talentosas e que eram próximas de mim.
Todos que trabalharam no filme são pessoas com quem eu já havia trabalhado antes e que me ajudaram muito a fazer o filme. Eu tinha uma ideia de como queria que o filme fosse, mas as coisas foram acontecendo de um jeito bastante intuitivo. Eu disse isso para a equipe e todo mundo riu: "Imagine como seria se os irmãos Dardenne dirigissem um filme de ação". Então, era esse tipo de loucura que eu dizia a eles.