Trama de fundo espiritual, trabalho de câmera austero, estética limpa e formalista, interpretações minimalistas e uma montagem que evita todo e qualquer "comentário de edição" — ou seja, o completo oposto das produções comerciais de Hollywood. Estas são as principais características dos filmes que seguem o estilo transcendental, conceito criado pelo então crítico de cinema Paul Schrader para definir as reflexivas, sombrias e dramáticas obras de mestres da sétima arte como Yasujiro Ozu (Era Uma Vez em Tóquio), Robert Bresson (Diário de um Padre) e Carl Theodor Dreyer (A Palavra).
Originalmente publicado em 1972, o livro do diretor e roteirista ganhou uma nova edição no ano passado para acompanhar o lançamento do aclamado First Reformed, mais recente trabalho de Schrader atrás das câmeras e, surpreendentemente, seu primeiro com base no estilo que fundamentou a carreira de seus principais referenciais. E por ocasião da estreia brasileira do drama intimista estrelado por Ethan Hawke, que ganhou 4 estrelas na crítica do AdoroCinema, conversamos exclusivamente com Schrader sobre First Reformed, o atual estado do cinema e, é claro, o estilo transcendental:
Pergunta: Como e quando você decidiu que First Reformed, cujo roteiro trouxe sua primeira indicação ao Oscar, seria sua estreia no estilo transcendental?
Resposta: Foi há três anos. Escrevi sobre esse tipo de filme há 45 anos, mas nunca tentei fazer um deles, nunca pensei que faria um. Sempre acreditei que não era um diretor austero. E, por volta de três anos atrás, entreguei um prêmio a Pawel Pawlikowski, que dirigiu o drama polonês Ida [...] Estávamos falando sobre o filme dele e sobre meu livro, sobre a espiritualidade do filme e sobre como a economia do cinema mudou, sobre como é mais difícil fazer um filme como Ida hoje em dia, e naquela noite voltei para casa, em Nova Iorque, e disse para mim mesmo: "Você terá 70 anos no ano que vem. Agora é hora de escrever aquele roteiro que você jurou nunca escrever". E assim que tomei essa decisão, as coisas começaram a acontecer. Não foi uma decisão racional; foi emocional.
P: Me parece que First Reformed deve muito, sobretudo, ao cinema de Robert Bresson, principalmente à Diário de um Padre, a primeira referência que me veio à mente. Mas para adotar o estilo transcendental, você precisou dar um passo atrás, sair de sua zona de conforto como diretor. Como foi esse processo?
R: Uma vez que tomei a decisão de fazer um filme espiritual e de trabalhar desta forma, eu fiz uma lista de todos os filmes que respeito e que pertencem a esta tradição, e os assisti novamente. Diário de um Padre, Luz de Inverno, A Palavra... E também a refilmagem de Carlos Reygadas, Luz Silenciosa [...] Revi os filmes de Andrei Tarkovsky e também os de Jessica Hausner. E depois de tudo isso, reuni as peças e comecei a montar o quebra-cabeça. O que não percebi antes de terminar o roteiro é que a cola que unia todas essas referências era Travis Bickle [Robert De Niro em Taxi Driver].
P: O Reverendo Ernst Toller, protagonista de First Reformed, é essa espécie de modernização de Travis Bickle, ainda que religiosa; a raiva e angústia estão lá. Como foi reler um personagem tão icônico e como foi trabalhar com um ator tão talentoso quanto Ethan Hawke?
R: Ethan não é daquele jeito, normalmente. Ele é bobo, divertido. Mas ele parecia certo para o papel. Ele é muito inteligente [...] Disse a ele: "Ethan, você precisará desviar de todos seus instintos de entretenimento e de agradabilidade e ir mais fundo dentro de você mesmo. Suprima todos eles. Se algo te disser para piscar, não o faça. Nunca ceda". Essa foi a minha instrução para ele.
P: Você falou, em algumas entrevistas, que os filmes quase que se jogam sobre o espectador com as cenas de ação e o estabelecimento de empatia. Mas, ao mesmo tempo em que estes filmes funcionam nestas zonas de ação e empatia, vivemos em tempos muito cínicos, tempos de descontentamento e de descrença. E First Reformed, que é um filme sóbrio, que traz o espectador para dentro, parece ser mais real, mais verdadeiro, mais autêntico. Você acredita que o estilo transcendental pode ser uma resposta ao cinismo contemporâneo?
R: Estes filmes sempre serão mais humanos para mim. Luz Silenciosa é um desses filmes, eles ainda são feitos hoje em dia, mas acho que, basicamente, as pessoas não levam mais os filmes a sério. E, por isso mesmo, é difícil fazer filmes sérios. Quando era mais jovem, nos anos 1970, todos levavam o cinema muito a sério. Eu levava os filmes muito a sério. Você sempre terá grande filmes quando o público leva o cinema a sério [...] First Reformed, por exemplo, é um ótimo filme, mas é um unicórnio [...] É um filme que saiu do meio da floresta e que quando você se vira para procurá-lo, ele já desapareceu.
P: First Reformed é um dos seus filmes mais aclamados, tanto como diretor, quanto como roteirista. A crítica adorou o longa e o filme também teve um bom retorno nas bilheterias, especialmente...
R: No âmbito do cinema independente, o filme é um hit. É um mundo muito exclusivo, povoado por filmes de baixo orçamento, mas isso certamente nos deixou muito felizes.
P: O que este tipo de sucesso, tanto crítico quanto financeiro, significa para você?
R: É intimidador, de certo modo. Porque você começa a se perguntar o que fazer a seguir. Espero que não seja meu último filme, mas se for, pelo menos é um ótimo último filme [...] Estou começando a reunir algumas ideias agora para o próximo. A pressão de trabalhar neste filme me atingiu de uma forma inesperada.
P: Então ser um veterano não deixa as coisas mais fáceis?
R: Não, não. Com certeza, não.
P: No que se refere à dimensão espiritual do filme, você disse que é impossível meditar rapidamente. Mas, hoje em dia, nossas sociedades se tornam cada vez mais rápidas com o passar dos dias. Como foi diminuir o compasso e criar este ritmo lento, poético e assombroso de First Reformed?
R: Acho que as pessoas apreciam a oportunidade de diminuir um pouco o ritmo. A verdade é que as coisas estão andando tão rapidamente hoje em dia que é muito mais fácil ir mais devagar, porque você não precisa fazer muito para ir devagar. Se todos andam a 130 km/h, basta andar a 100 km/h.
P: O cenário cinematográfico também está mudando rapidamente, especialmente com a ascensão das plataformas de streaming e das séries. Qual é sua opinião sobre o futuro do cinema?
R: Costumava pensar que o cinema estava passando por mais uma fase de transição, mas agora acredito que o cinema está em constante processo de mudança. Nunca voltará a ser como antes [...] A tecnologia do cinema sempre fica obsoleta, jamais consegue acompanhar o fluxo. A cada dois ou três meses surge um novo modelo econômico. Vivemos em um mundo repleto de tramas e de produtos: é muito barato fazer um filme hoje em dia. Qualquer um pode fazer um filme. Se você não descobriu como fazer um filme aos 12 anos, você está abaixo da curva de aprendizado. O que é bom é que todos podem fazer um filme, mas o que é ruim é que ninguém consegue ganhar dinheiro com isso.
P: E a indústria fica cada vez maior, com os blockbusters, os filmes da Marvel.
R: O sistema de estúdios está morrendo; está desaparecendo. Sempre existirão filmes que são eventos cinematográficos, mas o futuro também não parece ser bom para este tipo de cinema. Agora temos apenas alguns tipos de cinema: os eventos, que são os filmes em IMAX; o cinema familiar; o cinema de terror; e o cinema cult. É isto que sobrou do cinema tradicional.
P: E como se deu a escolha pelo enquadramento restritivo de First Reformed, a janela em 4:3?
R: Quando você se envolve com o cinema espiritual, você também se envolve com dispositivos restritivos. Você começa a fazer menos coisas. Menos movimentos de câmera, menos cortes. Não há música. É um estilo de abnegação. É diferente da maioria dos filmes, que estão desesperados pela atenção e pelo amor do público. Os filmes como No Coração das Trevas sempre estão se distanciando. E, como espectador, você pode fazer duas coisas: ou você desiste e vai embora, que é o seu direito, ou você pode tentar entrar no filme.
P: No filme, há uma pergunta recorrente: "Deus vai nos perdoar por nossos pecados contra a natureza?" Para finalizar: qual é sua opinião? Será assim? Deus, ou qualquer outro tipo de divindade, irá nos perdoar? Ou estamos condenados?
R: Não sei. A resposta de Toller é: "Não se pode conhecer a mente de Deus". Mas eu não sei. Existem correntes cristãs que realmente acreditam que nosso colapso como espécie faz parte do plano divino, mas quem é que pode conhecer a mente de Deus?