"Não caminhamos muito pela lógica, pelo racional. Tem bastante disso [da aleatoriedade]. Sempre respeitamos isso, sempre prezamos isso de não resolver e fechar o filme. Às vezes caímos muito na armadilha do óbvio, do certo, do corte no momento certo. Nós sempre tentamos recuar para nos abrirmos para a aleatoriedade, para esse risco, para um certo mistério [...] A nossa ideia era evitar o caminho fácil, que poderia fechar, resolver e emocionar", declarou o montador de Vermelha, palavras estas que dão o tom do que foi a sessão mais estranha (até agora, ao menos) desta 22ª edição da Mostra de Tiradentes.
Competindo pelo troféu da Mostra Aurora, o filme de estreia do goiano Getúlio Ribeiro fechou a noite de ontem, dia 24, na Cine-Tenda com a mais oblíqua, confusa, incongruente e instigante narrativa do festival mineiro em 2019. Baseada em uma estrutura propositalmente caótica, está comédia de forma quase cubista dividiu opiniões entre o público do evento, que faz as vezes de pontapé inicial do calendário cinematográfico brasileiro, fracionado em dois grupos: aqueles que desistiram do longa e o abandonaram ainda no início; e aqueles que compraram a ideia do mais incômodo e divertido filme exibido nesta edição.
Vermelha parece ser partidário da teoria de que uma obra é a expressão direta da personalidade de um artista. Durante o debate pós-sessão do longa, ocorrido hoje, dia 25, pela manhã, no Centro Cultural Yves Alves, Ribeiro respondeu às perguntas do público com um humor muito parecido com o de seu filme: uma irreverência muito séria, mas rebelde. "Filmar com o meu pai foi mais foda porque aí já tem uma falta de respeito à autoridade, né? Na hora de gravar não tinha essa ideia assim de preparo. Era tudo muito confuso", revelou o cineasta sobre o processo de dirigir sua própria família.
Mas apesar da evidente essência cômica, do longa e do diretor, o set de filmagens foi bastante rígido: "Às vezes parecia ser uma brincadeira, mas não era porque filmar com o Getúlio é muito forte. Ele é muito maduro e ele coloca as coisas no lugar. Ele puxa a orelha. Mesmo sendo do pai e da mãe, ele não deixa de puxar a orelha e repete a cena várias vezes. De novo. Eu, com a perna quebrada, Getúlio me tirou o sangue. E o sangue jorrando. É isso. Ele é muito sério e muito concentrado naquilo que ele faz. Eu o admiro muito por isso", derreteu-se Dona Diva, mãe do cineasta e uma das personagens de Vermelha.
Gaúcho, pai de Getúlio e protagonista da comédia, tem uma visão semelhante à de sua mulher, mas um tanto quanto menos terna: "Filmar com ele foi um saco", disse, arrancando risadas do público, antes de elogiar o filho. Beto, seu coadjuvante e estrela de algumas das mais hilárias cenas de Vermelha, contrariou o amigo, aproveitando o ensejo para também confessar sua paixão por novelas: "Para mim foi uma experiência muito agradável [...] Tem hora que dá mesmo vontade de sair correndo, repetir a cena várias vezes [...] Tirei um pouco de letra. Não é fácil, não. Mas eu consegui".
O caráter auto-ficcional do projeto, cuja trama não só fabula a cobrança de uma dívida contraída pelo pai do realizador, como ainda inclui sua irmã, Débora, chama à memória o cinema de André Novais Oliveira (Ela Volta na Quinta). E tanto caso da arte do cineasta goiano, quanto na do mineiro, o trabalho com não-atores é fundamental, necessário e desejado por Ribeiro: "Antes de ser um trabalho com um ator, é um trabalho com alguém que você conhece, e a partir do que você conhece, o trabalho é desenvolvido como extensão do que que é aquela pessoa. O que a câmera, você e aquela pessoa constroem", afirmou.
A importância de trazer sua família para a sétima arte, apesar das contradições e dos afetos conflitantes envolvidos no processo, dificuldades estas reconhecidas por Ribeiro, é que por meio de seus parentes, o cineasta encontrou espaço para desenvolver uma sinuosa estrutura, que extrai o riso dos limites entre o prosaico e o fantástico. Difícil, mas engajador, Vermelha recebeu 4 estrelas na crítica do AdoroCinema: "Na contramão de tudo e de todos, esta comédia cubista ordena uma escolha e não se submete às pressões: ou embarcamos na insana viagem ou capitulamos perante o frustrante acaso".
Anteriormente à verdadeira desordem provocada pela comédia na Cine-Tenda, foi a vez de Desvio testar as águas do festival mineiro. Descrito pela nossa avaliação como um drama simples e objetivo "com o espírito do punk rock em suas veias" que "peca ao procurar por complexidades incompatíveis aos seus acordes velozes e dissonantes", a estreia do diretor e roteirista Arthur Lins foi bem recebida pelo público, embaralhando ainda mais a situação da competitiva Mostra Aurora. Os vencedores da Mostra de Tiradentes serão conhecidos amanhã, dia 26 — continue ligado na cobertura completa do AdoroCinema!