Por mais que sejam costumeiramente associados aos centros de confinamento erguidos em cidades como Auschwitz e Dachau pela Alemanha Nazista e na região da Sibéria pelo regime soviético de Joséf Stálin, os campos de concentração não são uma exclusividade das ditaduras de meados do século XX. Não só por causa da continuidade desta bárbarie — em Myanmar, na Ásia, onde ocorre o genocídio do povo rohingya —, como também pelas evidências que documentam a construção de campos de concentração no Brasil, mais especificamente no Ceará, um capítulo sombrio, trágico e sanguinário de nossa história revelado por Currais, exibido ontem, dia 23, na 22ª Mostra de Tiradentes.
Dirigido por Sabina Colares e David Aguiar, o competidor pelo troféu da Mostra Olhos Livres do festival mineiro, traz o relato da trajetória silenciada de milhares de brasileiros que, nos anos 1930, morreram nos campos de concentração instituídos pelo regime de Getúlio Vargas, os chamados "currais". Mesclando códigos dos documentários e da ficção, o filme-híbrido resgata a memória dos flagelados, sobreviventes de uma das piores secas do Ceará que foram agrupados em um confinamento militar brutal, através da jornada de Romeu (Rômulo Braga), um quase detetive que faz a ponte entre o público e o vasto material de arquivo exibido pela obra — leia aqui a crítica do AdoroCinema.
Baseado nos escritos da pesquisadora Kênia Sousa Rios acerca das inúmeras mortes causadas pelos campos getulistas, Currais foi aprovado pelo público presente na Cine-Tenda, visivelmente comovido e abalado pelo chocante filme, "um cinema de baixo orçamento, latino-americano, de guerrilha" e feito na raça, como definiu Colares em seu discurso prévio à exibição do longa. Aguiar, por sua vez, complementou as palavras da codiretora dedicando a sessão aos concentrados, às pessoas que foram assassinadas, espoliadas e transformadas em objetos por uma "cultura de aniquilamento que nos tira a chance de ser humanos".
Na saída da projeção do filme-híbrido já era possível encontrar uma longa fila pelo saguão da tenda improvisada que faz as vezes de principal palco da Mostra de Tiradentes. A aglomeração foi formada pela ansiosa espera do público pela estreia do documentário A Rainha Nzinga Chegou, que trouxe mais uma história desconhecida: a da existência de um reinado negro em Minas Geiras, o Reino Treze de Maio, cuja essência descende da espiritualidade e das normas praticadas pela Rainha Nzinga, uma importante líder africana do século XVII que lutou contra os avanços colonialistas e escravagistas dos portugueses. Mas o entusiasmo do lado de fora não se comparou ao visto posteriormente no interior da Cine-Tenda.
Ao serem anunciados pelos alto-falantes da sala montada no centro histórico de Tiradentes, os membros da equipe de A Rainha Nzinga Chegou foram celebrados como são os jogadores de futebol por suas torcidas organizadas. Gritos e fortes aplausos acompanharam as falas das cineastas Junia Torres e Isabel Casimira Gasparino, atual rainha do Reino Treze de Maio. A soberana, aliás, recebeu uma ovação generalizada quando defendeu direitos e oportunidades amplos e totais para a população negra brasileira: "Tudo é para todo mundo, tudo é para nós também". Ao fim da projeção, o longa foi aclamado com duas salvas de palmas.
Rodado durante 16 anos como um esforço de preservação da cultura da irmandade negra mineira, o documentário foi, assim, credenciado como forte competidor, ao menos aos olhos do público, ao caneco da Mostra Aurora. A Rainha Nzinga Chegou (leia aqui a crítica do AdoroCinema) faz frente agora, portanto, ao também ovacionado drama de ficção científica Tremor Iê. Quem será o vencedor? Com ainda outros quatro longas a serem exibidos na Mostra Aurora, a disputa ainda está em aberto, tanto no prêmio popular, quanto do júri. Os ganhadores da Mostra de Tiradentes serão conhecidos no próximo sábado, dia 26 — continue ligado na cobertura do AdoroCinema do primeiro evento cinematográfico do calendário brasileiro!